De quantos espantos, de quantos sustos, de quantos medos, de quantas desilusões precisa alguém para se fortalecer?
Pode alguém querer andar ao vento, sobre as ondas, deslizar e correr sobre as águas, sentir-se envolvido pelas asas das grandes gaivotas brancas e não conseguir senão andar em terra, entre corredores e paredes, entre disfarces, alcatifas e conversas de salão?
Pode. Pode. Uma vida inteira a ser-se quem não se é? Pode-se muito bem.
Aquele que voando se sentiria rei dos mares, em terra sente-se desajeitado, um pobre palhaço sempre no dever de fazer rir os outros para disfarçar a sua condição, um albatroz de asas colossais arrastando-se por terra tal como Baudelaire tão bem o descreveu.
Habitua-se assim o nobre albatroz a ser o bobo da corte, o primo dilecto, o bem sucedido executivo, o divertido e charmoso donjuan. Habitua-se a levantar-se e ver-se no espelho já nem estranhado que aquele que o olha seja outro e que, depois, caminhe todos os dias não como se fosse para o cadafalso mas para um redil, um entre outros seres selvagens que a vida aprisionou.
Habitua-se assim o nobre albatroz a ser o bobo da corte, o primo dilecto, o bem sucedido executivo, o divertido e charmoso donjuan. Habitua-se a levantar-se e ver-se no espelho já nem estranhado que aquele que o olha seja outro e que, depois, caminhe todos os dias não como se fosse para o cadafalso mas para um redil, um entre outros seres selvagens que a vida aprisionou.
E os anos vão passando e os sonhos vão ficando caídos cada vez lá mais para trás, esquecidos, esboços que o tempo não completou, ténues sombras no passado, quase apenas uma longínqua imaginação.
Mas algo se vai quebrando por dentro.
Por vezes nunca se chega a ser suficientemente forte.
Por vezes nunca se chega a ser suficientemente forte.
Até que um dia.
Até que um dia uma vontade súbita de voltar a sonhar.
E depois outro. Voltar a sentir o gosto da maresia na pele tisnada.
E mais outro. Voltar a sentir a alegria dos grandes espaços.
E de novo. Velejar, trepar pelas ondas, desafiar tempestades, atravessar o pôr do sol.
Mesmo que se esteja sozinho, fechado entre quatro paredes.
E, aos poucos, já uma necessidade. Não passar sem esse suplemento de ânimo.
E já todos os dias.
E já não conseguir suportar o vazio dos dias iguais sem essa euforia do voo do albatroz sobre mar encapelado. Ou ser o forte albatroz de longas asas no meio de suaves gaivotas rasgando as nuvens. Fantásticos devaneios. Tão bons. Tão bons.
E depois já mais que uma vez por dia.
E aos poucos uma vergonha. E depois, cada vez mais, também o não ser capaz de suportar a vergonha. Fraco, fraco, tão fraco. Precisar de ajuda para não se lembrar da penosa vergonha.
E a dificuldade em adormecer. E ajuda para adormecer.
E uma ajuda para se manter acordado.
E uma ajuda para não pensar no que está a acontecer.
Pó branco como uma nuvem bondosa. E comprimidos como inócuas guloseimas.
E dinheiro.
E cada vez mais dinheiro.
E esconder. E esconder. E esconder sempre. De todos.
Quando quiser, vai parar.
Mas esse dia não chega, nunca mais chega. Só mais hoje, só mais esta vez. Muitas, muitas vezes.
E as pontas começam a ficar soltas. E como voltar a agarrá-las? Quando? Como? Tão espalhadas elas já estão.
E os novos amigos. E a vergonha. Escondê-los. Esconder-se.
Tudo tão frágil.
E a pressão. O dinheiro, as ausências, os não resultados, a impossibilidade das justificações, a alergia, não: é rinite, a insónia, o sono, a impaciência, a agitação. E sempre a disfarçar, a negar, a esconder, a mentir. Tantas mentiras, tantas, tantas mentiras. E tanta vergonha.
E o desespero. Viver assim para quê?
Mas e o desgosto causado aos outros se isto acabar já?
E a vergonha se descobrem?
Labirintos escorregadios, alucinações, pesadelos.
- Calem-se todos. Desapareçam. Deixem-me entrar dentro do mar, deixem-me voar pelas escarpas, perder-me nas altas vagas, deixem-me, deixem-me.
Quantas vezes à beira das imensas fragas, acabar, voar, morrer a voar. Ou entrar no mar, mergulhar, procurar o fundo mais fundo do mar. E lá ficar. Tantas vezes essa vontade.
Tomara um colo quente, o abraço morno da mãe, os joelhos do pai, a tia: indo eu, indo eu, a caminho de viseu, encontrei o meu amor, ai jesus que lá vou eu, e a avó, dá cá um xi-coração Duarte, gosto tanto do teu xi. Tomara um colo, tomara o perdão.
Desculpem, desculpem-me todos.
Dentro do carro em frente ao mar, Duarte sente-se vazio.
Depois dobra-se sobre o volante, rosto escondido.
Desaparecer. Sem deixar rasto.
Depois dobra-se sobre o volante, rosto escondido.
Desaparecer. Sem deixar rasto.
Então, num impulso, sem pensar, liga a Leonor. ‘Preciso de ajuda’. Leonor ouve um choro convulso, quase parece um menino que chora.
Quando vai responder, Leonor repara que a chamada caíu.
Quando vai responder, Leonor repara que a chamada caíu.
*
L'Albatros
Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.
À peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l'azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté d'eux.
Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid!
L'un agace son bec avec un brûle-gueule,
L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait!
Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.
— Charles Baudelaire
Em português, por exemplo AQUI
***
A música é Nocturne de Claude Debussy.
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Este episódio vem na sequência do que ontem escrevi, Leonor e Duarte - uma conversa muito difícil, episódio que já era seguimento de vários outros, sempre assinalados.
Abaixo poderão conhecer os meus últimos livros de poesia e, se quiserem esclarecer-me, estejam à vontade: porque é que algumas pessoas não gostam de poesia?
Abaixo desse post da poesia há um outro sobre 'Uma Agenda para Portugal', talvez a bomba que vai detonar o PSD passista.
No que se refere ao Ginjal e Lisboa hoje temos uma Metade bem especial e mais não digo pois acho que é coisa que merece ser vista/ouvida.
De facto, como temia, não consigo responder aos comentários, é tarde demais. Mas saibam que muito os agradeço [e aqui deixo uma pergunta ao Comentador-Poeta: para quando um poema daqueles especiais de que eu tanto gostava...? Tenho saudades...!
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E, por hoje, por aqui me fico. Desejo-vos, meus Caros Leitores uma bela quinta feira.
Olá UJM!
ResponderEliminarUm belíssimo naco de prosa!!!!
Como sempre!
Um abraço
A minha intuição é um desastre. Pensei em Blackjack e afinal era white powder...
ResponderEliminarEnfim, o que por aí mais há são executivos a snifar.
Olá, Joaquim,
ResponderEliminarMuito obrigada. Gosto de escrever e se esse gosto transparece fico toda contente.
Um abraço!
Olá jrd,
ResponderEliminarPois, percebi que, por si, seria mesmo jogo e deixou-me balançada porque também podia ser jogo, sim e até poderei voltar ao tema do jogo pois assisti de muito perto a um caso de grande vício com o que isso implicou de muito grave. Mas, de facto, aqui comecei a inclinar-me para o snifanço que é uma realidade concreta.
Há, de facto, uma pressão que por vezes se soma a ilusão de invencibilidade, ou a ilusões e sonhos que vão ficando para trás, e uma exigência difícil de aguentar. é até difícil de imaginar, vendo de fora, mas é um facto. Aliás é sabido que a 'malta' do sector financeiro de Wall Street faziam o que faziam (e, fazem o que fazem) muitas vezes completamente 'high'.
E uma coisa que me incomoda é como hábitos destes conseguem ser ocultados da família e amigos durante anos. E isto também é um facto.
Factos tristes.
Por isso acabei de escrever a história e acabei-a de forma feliz porque já basta de tristezas.
Obrigada pela sua atenção, pela sua inspiração... e pela Agnes Obel.
Um abraço!
ResponderEliminar'A Queda de um Anjo! personificada na 'Queda do belo albatroz', uma prosa belíssima e tocante. Tantos e tantos Duartes poderíamos encontrar neste mundo de pressões de toda a ordem.A Leonor irá a tempo de o ajudar?
Cá vou eu, nesta minha caminhada rumo ao desfecho deste conto que, penso, terá um final feliz, segundo o que li no comentário da UJM...
Bj
Olinda