Uma casa com história, grande, escondida do exterior por um grande muro, paredes cobertas de hera, pátio interior, escadaria de pedra com fetos tombando dos vasos, lá dentro grandes pinturas a óleo, tapeçarias, mesas com toalhas de linho, copos de cristal, uma grande lareira acesa.
As vozes são civilizadamente alegres, fala-se baixo, há cumplicidades antigas no ar, uns sentam-se nos grandes sofás, outros olham as estantes enquanto conversam, encadernações antigas, e os tapetes são de lã, e são macios os pesados cortinados, e tudo parece abafar o ruído e o ambiente fica íntimo, e há jarrões brasonados e janelas por onde se espreita o frio húmido do exterior. Tudo transmite a ideia de conforto com muita patine.
Não tarda, duas empregadas servirão os amuse-bouche, depois, então, o consommé, as excelentes iguarias, a perdiz é sempre uma delícia, o vinho apropriado, e as conversas evoluirão entre sorrisos, palavras soltas, gestos discretos.
A mulher não merece mais atenções que qualquer dos homens, está habituada a ser uma entre iguais.
Se alguém olhasse de fora perceberia, contudo, que há amizades desiguais, jogos disfarçados, interesses a serem negociados entre sorrisos, e talvez algo mais.
Quem será esta mulher que parece estar em casa, sorridente e afável, distribuindo palavras distendidas, no meio de um grupo de homens?, talvez se perguntasse esse alguém.
Contudo, minutos antes, quando circulava pela casa procurando um telefone fixo, Afonso viu numa outra divisão, num relance que não soube interpretar, alguém que parecia querer alcançar o braço desta mulher. Mas logo a porta se fechou e ele não conseguiu ver nada mais. Depois, à medida que se afastava, pareceu-lhe ouvir vozes quase em surdina, como que querendo abafar uma discussão.
Distraído que ficou, perdeu-se pelo casarão e, quando regressou, já ela estava sentada na sala, calma, bem disposta, petiscando e sorrindo enquanto conversava.
Afonso tentou reconhecer o braço que a queria agarrar mas todos os braços lhe pareceram iguais e em nenhum dos presentes percebeu qualquer inquietação.
À mesa, uma grande mesa redonda com um grande e alto castiçal de prata aceso a meio, a conversa fluíu com naturalidade, um ou outro toque de jocosidade: a recente reunião em Zurique, depois a conversa com o ministro que pouco acrescentou (é melhor que o outro?, e risos), as parcerias em análise, o parecer que, afinal, é tudo menos conclusivo pelo que será melhor pedir outro, e os financiamentos, e o recurso a fundos: isso anda ou não anda?, e a fiscalidade que é de gente doida, e ainda algum futebol (o Ronaldo, o Mourinho, o Blatter, mas também o João Moutinho, quem diria?), e sempre o frio e a humidade que aqui sempre se sente, e umas intrigas de salão sobre o orador que dentro em pouco se lhes juntaria, e também o jantar de Natal que se avizinhava. O costume, portanto.
Enquanto isso, as empregadas deslizavam em silêncio servindo, retirando, repondo. No final, cumprindo o ritual, a cozinheira veio à mesa perguntar se estava tudo bem e todos disseram que, como sempre, estava tudo óptimo, que não se come melhor em lado nenhum do mundo. E ela retirou-se feliz, faces coradas, a sensação de reconhecimento perante um dever mil vezes cumprido.
Durante todo o almoço, Afonso tentou descobrir em Leonor alguma alteração, alguma troca de olhares suspeita com qualquer dos presentes. Mas nada. Ela participou nas conversas, tranquila, sorridente, como se nada a afectasse. Tentou também detectar algum nervosismo em algum dos homens mas, identicamente, todos pareciam bem dispostos. De todos, o único que parecia estar nervoso era ele próprio, Afonso.
Quando se levantaram, Afonso abeirou-se de Leonor. Aquele perfume tão seu conhecido, aquele sorriso tão dúbio, aquela segurança vagamente intimidante. Então, tudo bem? Ainda não falámos…
Leonor respondeu, sorridente, despreocupada. Não? Não falámos? Não dei por isso. Achei que já tinha falado com toda a gente. Mas está tudo bem, sim. E consigo também?
Quem a veja nestas situações e ainda a não conheça pode pensar que se trata de uma mulher frívola, mesmo ela parece gostar de induzir nesse sentido, por vezes finge que não percebe, pergunta, faz-se de ingénua. Mas a frivolidade em Leonor é apenas aparência, toda a gente sabe disso muito bem. Afonso atalhou a conversa de circunstância, Há bocado, lá dentro, pareceu-me vê-la e ouvi-la a discutir com alguém. Passa-se alguma coisa?
Leonor arqueou as sobrancelhas, abriu os olhos como que de espanto, A mim? Viu-me…? Que disparate! Depois alisou a interjeição, não fosse ele ofender-se, Olhe que não, doutor, olhe que não. Não saí da sala. Na volta sonhou. E em voz mais baixa, como que simulando uma indiscrição, Anda a ter sonhos comigo, doutor…?
Afonso ficou de semblante carregado. Não tinha dúvidas de que era ela que tinha estado naquela outra sala mas percebeu que não valia a pena insistir.
O convidado tinha chegado, veio sorridente beijar a mão de Leonor, cumprimentar os restantes e todos se dirigiram à pequena sala onde iria decorrer a prelecção e a troca de impressões.
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A música é de Brahms, Sonata Nº 1 para Violino interpretada por Augustin Dumay e Maria João Pires.
Leonor é representada por Kate Winslet. Afonso é representado por George Clooney, aqui fotografado por Annie Leibovitz.
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Já agora: descendo um pouco mais poderão ler, ver e ouvir: Santa Joana Princesa. Momentos de suavidade em tempos de agruras.
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Convido-vos ainda a visitarem-me no
Ginjal e Lisboa onde Benjamin Schmid interpreta Korngold. E José Gomes Ferreira faz-me sentir saudades como se, de facto, tivesse eu saudades.
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E, por hoje, fico-me por aqui. Desejo-vos, meus Caros Leitores uma terça feira muito agradável.