Hoje vinha para escrever sobre Elzéart Bouffier e sobre Alexandre Herculano. Mas tinha começado, já no outro dia, um texto que, se não o acabasse agora, talvez perdesse a oportunidade.
Aviso, no entanto que, se não estiverem para ler sobre temas desta natureza, poderão deslizar rapidamente e ir até ao próximo texto onde descrevo como, na fisioterapia, inesperadamente, talvez por estar de chuva, me vi rodeada por homens peludos como ursos felpudos.
Muito se tem especulado, quase obsessivamente, sobre se Sócrates falou verdade ou mentira quando disse que Passos Coelho estava a fazer crescer a dívida mais do que ele o tinha feito no último período da sua governação. Os jornais e os comentadores televisivos têm-se entretido com isso e vejo que, levados pela paixão e ódio, meio mundo continua a fustigar Sócrates sem se deter, antes, a pensar em todos os lados da questão.
Nestas coisas da política é natural que nos deixemos levar pelas emoções. Mas não é natural que, por causa disso, deixemos de pensar. Pensar é preciso. Quem o feio ama bonito lhe parece, é um facto. Mas que o amor não nos tolde a razão, por completo, é fundamental.
Vejamos, então:
1. Todas as dívidas são iguais?
1.a. A dívida de Sócrates é igual à dívida de Passos Coelho?
1.b. E, por exemplo, a dívida da Alemanha é ‘igual’ à de Portugal?
2. O que fazer para sair disto?
Vou dizer-vos a minha opinião.
('me', salvo seja, claro!) |
1. Sobre a questão das dívidas: são todas iguais?
Quando rebentou a bronca do Lehman e todo o sistema financeiro tremeu, a UE incentivou os Estados membros a investirem forte para ver se a crise financeira não contagiava a economia. Aconteceu isso em Portugal e um pouco por todo o lado. Países com economia forte aguentaram-se bem mas países com economia débil arcaram com as consequências. Um pouco por todo o lado, os défices aumentaram e as dívidas subiram.
Não seria dramático se fosse uma coisa temporária (uma barreira temporária para evitar um descalabro) e se, a somar a isso, não acontecesse outra desgraça.
O drama é que aconteceu. Aconteceu em Portugal e noutros países.
Aconteceu que os especuladores financeiros - que farejam a carniça para ganharem dinheiro fácil - perceberam que era aos países mais fragilizados que poderiam vir buscar os maiores lucros.
1.a. A dívida de Sócrates é maior, menor ou igual à de Passos Coelho?
(A pergunta é estúpida, desde já o digo mas, mesmo assim, vou tentar responder)
Nos últimos tempos do Governo Sócrates, quanto mais Portugal estava com a corda na garganta, mais os especuladores subiam a parada. São fundos apátridas, amorais, querem é altos rendimentos, movem-se para onde as presas são fracas e pagam o que for necessário para sobreviver. Investimentos à custa da dívida e dívida paga a peso de outro dá desastre. Deu.
Para onde foi o dinheiro gasto nessas alturas? Para a obra feita e para os juros especulativos e agiotas. No que à obra se refere, menos mal.
A obra aí está, estradas boas, boas escolas, e foi dado emprego a quem nelas trabalhou, às pequenas indústrias que as alimentavam, ao pequeno comércio circundante. E eram impostos e contribuições que as empresas e as pessoas pagavam.
Pode dizer-se que as estradas são caras e têm pouco movimento, que não justificava o investimento. Concordo.
No que se refere às escolas, acho um investimento bom, útil. Já aqui o escrevi: as escolas devem ser locais dignos, modernos, um orgulho para quem neles trabalha ou estuda, um orgulho para as comunidades em que se inserem, um pólo de qualidade, excelência e conforto. Sou absolutamente contra o miserabilismo atávico.
Sei que os cadernos de encargos das escolas respeitaram normas e regulamentos aprovados pela UE e que exigiam, em alguns pontos particulares, condições de exigência um bocado despropositadas e que obrigaram ao fornecimento de equipamentos alemães. O longo braço germânico não descansa. Poderia o Governo Sócrates ter-se oposto ao cumprimento desses regulamentos? Talvez, não sei. Mas são detalhes. A renovação do parque escolar foi um investimento virtuoso.
Já no que se refere a algumas estradas, aí já o mérito é mais duvidoso. Aí o mérito reside sobretudo no que acima referi e assinalei escrevendo a itálico. Mas não é um mérito menor já que conseguiria aguentar a situação social do país até que o ciclo se invertesse e voltasse a haver crescimento económico como tinha havido antes da crise do Lehman.
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Mas veja-se agora o oposto disto. Apelando ao lado mais provinciano e atado (ou atrasado) de uma população maioritariamente formada no culto da culpa e da expiação, tentaram convencer os portugueses que se tinham andado a portar mal, pelo que tinham que pagar as favas. O Governo Passos Coelho suspendeu o investimento. Aumentou os impostos, reduziu ordenados. Secou a economia. A troco de reduzir a dívida, parou com tudo, empobreceu o país.
Resultado?
Está à vista: um desemprego inaudito, generalizado. Uma queda das receitas. Com as empresas a fecharem e com a corda na garganta para conseguirem sobreviver, pagam cada vez menos impostos. Com o desemprego a disparar, há menos gente a fazer descontos e a pagar impostos. Pelo contrário, há mais subsídio de desemprego a pagar.
Todas as contas públicas estão, portanto, totalmente desequilibradas, o défice aumenta, a economia não gera excedentes com que pagar a dívida e os respectivos juros e, logo, a dívida aumenta cada vez mais.
Ou seja, temos um resultado pior do que com a ‘receita’ anterior.
Qual a explicação para isto? Simples. Quer o défice quer, indirectamente, a dívida resultam de uma subtracção entre uma parcela que tem a ver com receitas e outra que tem a ver com despesas. O resultado pode ser inferior quer por aumento da despesa quer por redução da receita.
Sócrates pode ser (em parte injustamente) acusado de, na recta final do seu governo, ter aumentado a dívida por ter aumentado a despesa - mas Passos Coelho pode (justamente) ser acusado de ter aumentado identicamente a dívida mas, desta vez, por ter reduzido fatalmente a receita.
E o que é o mais estúpido nisto tudo? O mais estúpido é que Passos Coelho fez tudo mal. Praticamente arrasou a economia, arrasou com a vida de muitos portugueses, vendeu ou está em vias de vender as principais empresas ao estrangeiro e supostamente fez isso tudo para obter o resultado oposto ao que está a obter. E porquê? Porque não percebe nada de nada. Era óbvio que ia fazer entrar o país numa espiral recessiva.
Agora não temos obra feita, não temos desenvolvimento, e temos dívida e défice (e estes seguem um padrão diferente já que, a continuarem assim, não são temporários: são autofágicos, quanto menos crescimento, mais desemprego, mais dívida e défice, menos desenvolvimento, mais dívida e défice, mais desemprego, mais dívida e défice, mais desemprego, mais dívida e défice, imparavelmente - e isto supondo que esta crise não vai chegar aos bancos e não nos impõem um saque aos depósitos como no Chipre). Até que alguém os pare, claro.
1.b. Mas todas as dívidas contraídas durante aquele pico nevrálgico pós Lehman foram más?
Claro que não. Quer nessa altura, quer agora, há dívidas boas. São as dívidas virtuosas. A dívida que a Alemanha, a Holanda ou outros países ricos do norte contraem é uma dívida boa.
Porquê? Porque são países com crescimento (positivo). Além disso, financiam-se a juros perto do zero. Ou seja, com a economia a gerar excedentes e praticamente sem pagar juros, tudo é ganho. Podem investir em força que a dívida não cresce e o défice não aumenta.
Ou seja, diabolizar a dívida é um disparate. A dívida é um motor de crescimento. Se.
Se…? Sim, se for sustentável, ou seja, se a economia crescer e se os juros não forem acima do que a economia pode pagar.
Presentemente a dívida é virtuosa nos países ricos do norte da Europa; é viciosa, nefasta, nos países destruídos do sul.
Claro que esta situação gera ainda mas desigualdades. Temos, na mesma (des)união monetária, países em ciclo de crescimento positivo e outros, afogados, moribundos, presos numa espiral recessiva.
- Então, faz sentido comparar o tamanho da dívida?
O tamanho, só o tamanho - na dívida como em tudo na vida - só por si não significa nada. O tamanho tem que ser avaliado em função da sua sustentabilidade (a língua portuguesa é tramada; eu a querer falar a sério e ela só a tentar desencaminhar-me). Pronto, vou então dizer de outra maneira: não faz sentido andar a comparar números despidos da sua contextualidade.
2. Mas, em Portugal, agora que estamos metidos num buraco de todo o tamanho, o que fazer, então?
(do blog We have kaos in the Garden) |
Uma de duas coisas: os que estão presos nas malhas deste ciclo vicioso ou saem do euro ou renegoceiam fortemente as suas condições de vida.
Eu acho que antes de se equacionar sair já do euro há que tentar o óbvio, ou seja renegociar o óbvio. E o que é o óbvio?
- Renegociar as condições de vida passa por transformar a dívida de curto e médio prazo em dívida de longo prazo, por forma a aliviar estes próximos anos.
- Passa por obter condições de financiamento idênticas às dos países ricos. Para isso existe o BCE.
- Passa por tirar a pata da ignorância e da incompetência de cima da economia.
- E os impostos têm que baixar.
- E tem que haver uma aposta vigorosa no estímulo ao desenvolvimento.
- E deve atrair-se investimento, estrangeiro se possível (o nacional infelizmente é de pouca monta).
- E, de preferência, devem dar-se condições para que a indústria volte a funcionar.
- E devem identificar-se sectores estratégicos e apostar neles de forma muito integrada e profissional.
- E deve estimular-se o desenvolvimento da educação e da cultura (que potenciam o crescimento das nações - para além de que a cultura, é ela própria, uma das mais sustentáveis indústrias).
- E deve estimular-se fortemente a inversão do ciclo demográfico. A natalidade tem que ser incentivada, a emigração tem que ser estancada, a imigração deve ser apoiada (uma vez que a sobrevivência do Estado Social, e, nomeadamente, o sistema de pensões depende disso).
- E, claro!!!, devem empreender-se todas as reformas necessárias para o bom funcionamento do estado e das contas públicas.
- ... E, sobretudo, que nunca nos falte o bom humor e a energia e a esperança. O futuro é nosso, temos que o recuperar.
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É verdade: se querem saber dos ursões (e ursinhos) felpudos de que hoje me vi cercada é já a seguir.
Mas, se quiserem também ler uma coisa num outro registo, muito gostaria de vos ter lá no meu Ginjal e Lisboa. Hoje deixo que o vento leve a minha pele, levada também pelas palavras de Renata Correia Botelho. Na música, uma outra grande interpretação: desta vez, na harpa, temos uma bela música celta tocada maravilhosamente por Catrin Finch.
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E já está mais do que na hora de me ir embora. Deixei de responder aos comentários para ver se me deito mais cedo e afinal ocupo o tempo a escrever mais textos. Acho que tenho que ter aqui um despertador ou um mecanismo que me desligue as luzes todas ou um martelo que me dê cabeça quando passar da uma da manhã.
Enfim... Vocês desculpem lá estas avalanches... E tenham, meus CarosLleitores, uma boa terça feira!
Olá UJM!
ResponderEliminarExcelente, mais uma vez , a sua análise e em jeito manso o que é invulgar na nossa praça! Por isso , e por outras "coisas" gosto ,,e muito de visitar o seu Blog!
um abraço
Como eu gostava de ter escrito este texto!
ResponderEliminarBeijinho
Olá UJM,
ResponderEliminarQue partida!...Começou de mansinho, ao seu jeito e depois surpreendeu-nos com uma grande lição de macro economia, mostrando as diferenças existentes entre o "tamanho" da dívida de Sócrates e a de Passos Coelho. Uma análise excelente, digna de figurar na capa da melhor revista de economia. E porque não?
Apetecia transcrever para PDF e truz!...divulgar, divulgar ainda mais!
Obrigada pela partilha de conhecimentos...Fala quem sabe!
Um grande beijinho