Kyrie Eleison - pelos céus imensos
Gosto de ver o céu. De manhã, quando me levanto, vou logo espreitar o céu. Faço-o não apenas para ver o que hei-de vestir mas também porque, desde pequena, gosto de o olhar, é uma companhia mutante e é um espaço de imensidão e beleza.
Se está totalmente limpo e azul o meu olhar é rápido. Um céu assim tem pouca história, é liso e puro demais, quase desinteressante como as coisas ou pessoas demasiado perfeitas o são.
Mas, se está tingido seja de que cor for ou se tem nuvens, aí a beleza ganha texturas e densidade e o meu olhar é desperto pelas suas singularidades e pela sua permanente capacidade de se transformar.
No sábado fotografei o céu ao fim do dia. Havia nuvens rosadas e o sol estava em fogo e eu gosto de o espreitar pelo meio da vegetação, o mato torna-se um véu caótico, indomável, o que torna ainda mais belo e abstracto o céu que assim se antevê.
Os cheiros da vegetação do campo acentuam-se com o sol ao entardecer, há um maravilhoso perfume no ar, é o perfume da terra e da vida que vive dentro das plantas. E há o canto dos pássaros. Antes da noite cair, as aves cantam, festejam o dia que passou e o que está por vir. Tento, então, descobrir estas aves felizes mas confundem-se com os ramos onde se acolhem. A esta hora em que o sol quase se esconde nunca consegui ver nenhuma. Hoje eu e os meus meninos, os grandes e os pequeninos, andámos debaixo do grande pinheiro do qual vinha um canto quase mágico. Mas nada descobrimos. Se calhar era o próprio pinheiro que cantava.
Este ano os figos amadureceram depressa demais, ficaram pequenos e muito maduros. Caíram muitos e, então, sob as figueiras há agora uma cama de figos fermentados ou secos e o cheiro é doce e intenso. Um fim de tarde sob uma figueira cheirosa com o grande céu no nosso horizonte é uma experiência muito envolvente, muito doce (ou então sou eu que, envolvida em afecto, me sinto tão agradecida e feliz que tudo me parece contribuir para este estado de alma). E uma visão assim também me ajuda a relativizar as coisas pequenas. Eu, já de mim, tendo a colocar as coisas em perspectiva e a não me dar grande importância nem a conferir grande estatuto às minudências quotidianas, por muito emproadas que me apareçam pela frente. Mas, quando olho um céu grande assim, quase excessivamente belo, ainda mais me convenço que não apenas não devemos vergar-nos a quem não tem pitada de grandeza nem sabe o que isso é, como não devemos nunca acomodar-nos e desistir de lutar pela dignidade do nosso futuro.
Quem como nós, portugueses, tem o privilégio de viver num sítio tão belo, em paz, sob um céu tão generoso, não pode aceitar viver uma vida de sofrimento, desalento e desistência.
No domingo voltei à cidade e o céu estava de novo tão belo que, antes de ir para casa, senti uma vontade enorme de o ir ver sobre o rio.
Abençoei a visão que me era dada contemplar. É uma beleza extraordinária e está à nossa disposição. Não temos que a pagar, nem temos que pagar impostos. Claro que se algum dos pequenos ministros que nos desgovernam se lembrarem disso, um dia pode ser que tenhamos que pagar uma taxa progressiva sempre que olharmos o céu (se estiver um céu azulinho banal, paga-se o equivalente ao iva, se estiver um céu feérico paga-se a taxa dos pseudo-ricos, os pobres que trabalham dez meses por ano para o Estado).
Mas há pouco não paguei nada. O rio, visto de cima, estava escuro, um discreto cinza brilhante que não queria roubar protagonismo a um céu tão belo que parecia inventado.
A ponte era um suave rendilhado que atravessava o espaço e, ao fundo, a Torre de Belém, o Padrão dos Descobrimentos, a Torre inclinada de Algés, tudo parecia pequeno, pequenos pontos de intervenção humana, insignificantes quando vistos numa escala que abre espaço para um céu infinito.
E depois, num canto, discreto, generoso no seu abraço, o Cristo Rei.
Olhando a indigência (a todos os níveis) que alastra no País (e na Europa, especialmente na Europa do sul) como uma insidiosa mancha, olhando a perplexidade dos portugueses que não percebem como foi possível o País tornar-se um lugar tão triste, o Cristo Rei mantém-se ali, sempre presente, sempre pronto para amparar quem para ele olhe.
Não sou dada a práticas religiosas, não frequento a igreja. Mas as grandes manifestações da natureza ou do homem convocam a minha religiosidade (se é que esta é a palavra certa para exprimir o que sinto nessas alturas). Mas, nestes momentos, sinto também que quem tem a sorte de ter em si o dom da vida e de o viver num espaço tão privilegiado como é o nosso, sob um céu tão belo, não pode não honrar esse dom, não pode deixar-se morrer devagar, andar para trás no tempo, empobrecer deliberadamente, perder direitos, pôr em risco a sua segurança, não pode abdicar do seu futuro, não pode deixar cair a esperança.
Estive, pois, ali, sobre o rio, sob este céu imenso, respirando o ar fresco da noite que caía, sentindo-me feliz por ser quem sou, aqui, hoje, e com vontade de lutar pela minha felicidade, pela felicidade dos meus e dos meus concidadãos.
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A música é Kyrie Eleison da Missa em Si menor de J.S.Bach.
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Tenham, meus Caros leitores, uma boa semana a começar já por esta segunda feira.
Cara UJM:
ResponderEliminarEste não foi ano de grandes figos. Ainda tenho, uvas também. Semeadas as nabiças e afins, nascidas, rego-as agora que vai quente o tempo... Sombrio também, outras as sombras...
Boa semana,
J. Rodrigues Dias
Muito justa, esta tua dissertação, minha Amiga UJM.
ResponderEliminarMas, como deves imaginar, nas folhas de Excel usadas e compiladas pelos senhores ministros, para calcular o impacto das medidas que nos impõem, não são considerados parâmeteros tão naturais como estes que no teu texto assumem importâncias incomensuráveis.
Se o fizessem, iriam constatar que afinal, as soluções para as crises, são bem mais fáceis de encontrar naquilo que é natural, do que, naquilo que é artificial.
Mas prontes... eles é que estudaram e agentes é cos elegêreimos...
Amiga:
ResponderEliminarGosto do céu de madrugada, quando o sol ainda só se adivinha.
Ontem à noitinha, estava um céu lindo. Também o vi e o meu marido tirou umas fotos. Mas é a minha hora triste. A hora de todas as saudades.
As suas fotos estão lindas.
Espero que a Lídia, no seu passeio com o Paulo, tenha visto aquele céu rosado.
Abraço para si e para ela.
Mary
Olá Caro J. Rodrigues Dias,
ResponderEliminarEstavam as figueiras carregadas e anunciavam-se bons quando, talvez pelos calores fortes, começaram a ficar maduros ainda pequenos, muitas a cair. E, depois de apanhados, pouco de aguentavam, logo melados.
As uvas saíram muito doces mas também me secaram muito. Ainda estes dias o meu filho apanhou uns cachos que estavam todos em passa. Mas estes passaram quase de verdes para passas.
E mesmo os marmeleiros este ano deram muito menos marmelos. Não sei do que foi. Uma tia minha dizia sempre que as árvores gostavam de conversa e de mimo. Este ano, no verão, passei muito tempo sem lhes fazer companhia. Se calhar foi isso, pensaram que eu as ia abandonar.
Eu também gostava de ter uma horta mas aquilo é só pedra, não dá para legumes miúdos. Só algumas árvores e arbustos lá resistem.
Quanto às outras sombras... não as deixo entrar lá, in heaven. Recuso-me. Lá só quero gente de bem, mesmo que apenas me visitem em sombra, com a sua voz de poetas.
Uma boa semana também para si, J. Rodrigues Dias.
Pois é, Bartolomeu,...
ResponderEliminarNós é que lá os pusemos (e aqui o 'nós' é uma forma de expressão porque eu não os pus lá coisa nenhuma), convencidos que era um brinde e, afinal, o que nos saíu foi a fava...
Eu diria que, para governar, alguém que lá esteja por bem deveria, em primeiro lugar, querer que a população vivesse feliz (mas sustentadamente feliz, não alienada ou temporariamente feliz). E, a seguir, quereria desenvolver o País, fazer com que as gerações mais novas tivessem sempre uma vida melhor que a geração anterior. Com essas premissas, começaria a tomar decisões.
Agora estas inqualificáveis criaturas têm como desígnio principal agradar aos mercados...
Fico 'passada' com isto.
Um céu tão lindo para a gente ver e quem o vai querer ver se estivermos todos aflitos com o que se passa no País...?!
Por essas bandas o céu no domingo ao cair da noite também deve ter estado lindo.
Uma bela semana, Bartolomeu - e bons voos.
Olá Mary,
ResponderEliminarEu sou uma criatura noctívaga. Começo a 'render' mais à medida que o dia avança. Quando me levanto venho espreitar o céu e gosto de o ver a romper o rio, lindo. Mas gosto mais de ver a noite a cair sobre o rio ou sobre os montes.
A mim o anoitecer não me dá tristeza. Acho-o mágico tanto mais que é a terra que se esconde do sol já que é ela que anda à roda dele. Mas parece mesmo que é o sol que começa a cair sob a linha do horizonte, magia mesmo.
Quanto à Lídia, ando com muita vontade de voltar a ela mas parece que há todos os dias alguma proeza desta gente que nos desgoverna que me desvia dessa rota. A ver se hoje ou amanhã volto. Gostei muito que nos tenha deixado um abraço, a mim e a ela.
Um beijinho, Mary.
Olá Jeitinho,
ResponderEliminarPela sua ausência deduzi que estaria no seu Paraíso, purificando-se fisica e espiritualmente para enfrentar mais uma semana neste quase inferno.
Pelo que nos conta foi lindo e descrevo-o muito bem.
De facto não há nada melhor que crianças no meio da Natureza, tanta ternura, tanta pureza e alegria.
Só é pena que depois de partirem fiquemos tão vazios deles e tambem de energia. É a contrapartida de sermos avós.
Tambem reparei no Ceu de domingo. Aqui, sobre a Serra de Carnaxide, caiu um manto de nuvens cor de fogo que tornou a tarde quente e macia.
Vamos agradecendo a Cristo Rei a protecção e a possibilidade destas sensações.
Uma boa semana.
Olá,
ResponderEliminarComo é belo, sensível e doce este seu olhar sobre o Tejo, o nosso céu, o sol e toda a natureza envolvente!...
Felizmente que também tenho o privilégio de poder contemplar todos os dias, de minha casa, o nascer e o pôr do sol. De manhã normalmente as cores do céu são muito suaves e normas e ao entardecer apresenta cores de fogo vivo, tão intensa, que me detenho imenso tempo em contemplação. Dá-me a sensação de que o sol encosta a cabeça no topo dos pinheiros, lá na linha do horizonte, e se deixa adormecer lentamente.... É uma sensação estranha esta que a natureza nos transmite.
Sinto-me também muito agradecida por partilhar comigo este lindo texto de encantar recheado de tão doces mimos!
Um beijinho e uma boa semana.
Olá Pôr do Sol,
ResponderEliminarTive um fim de semana muito bom. Reconfortante, pleno de afectos. Fiquei eu e o meu marido quase de rastos mas ficamos sempre, nestes dias mais prolongados, com um stock de expressões, de gracinhas, para ir recordando ao longo dos próximos dias. Estão numa fase maravilhosa, em que aprendem tudo, em que nos surpreendem com o que já sabem. Sabe como é pois com a sua princesinha é a mesma coisa, certamente. Só apetece estrafegá-los com abraços e beijinhos, não é?
E depois este sol de outono, o ambiente muito ameno, tudo tão bom...
E para nos alargar horizontes e transmitir beleza ainda havia aquele céu quente e deslumbrante.
Fico, toda eu, feita em mel...
Obrigada pelas suas palavras e um beijinho, Sol Nascente.
Maria Eduardo, olá,
ResponderEliminarQue palavras tão bonitas e tão afáveis. Gostei tanto de as ler. É tal e qual como descreve. O sol pousado nas árvores, aqueles tons quentes, tudo tão bonito.
E no campo a chilreada dos pássaros. Fico encantada.
E depois ir ver o mesmo sol a deitar-se nas águas do Tejo... lindo, lindo.
São momentos de grande tranquilidade, um bálsamo para a alma.
Muito obrigada, Maria Eduardo, soube-me muito bem ler o que escreveu.
Um beijinho!
Olá jeitinho,
ResponderEliminarNão se penetencie por não ter conversado com as suas arvores, é que não foi por isso, como diziam os antigos é ano bisexto logo "promete muito e dá pouco". Até ao governo se aplica, mas esse não dá nada, tira tudo.
Beijinhos Ana
Olá Ana,
ResponderEliminarNão sabia disso que diz e achei imensa graça, gosto imenso dos saberes populares, dou-lhes muito valor.
Se calhar foi isso. Tenho já um diospireiro que todos os anos dá uns diospiros deliciosos. Pois este ano nem um! Tenho andado mesmo decepcionada com isto mas se calhar é essa a razão.
Quanto ao governo ser uma desgraça não tem a ver com o ano bissexto, tem a ver é com não terem jeito nenhum para o que fazem, não sabem, são ignorantes, incapazes, inexperientes, impreparados, joguetes - nem sei que mais diga. Mas dali não sai fruta, peixe, carne, não sai nada.
Um beijinho, Ana!