segunda-feira, julho 02, 2012

Cartas de amor entre o Nininho e a Bebé, o Íbis e a Íbis, o Pretinho e a Bebé-anjinho (e outros que tais). Todas as cartas de amor são ridículas...? Claro, mas apenas para aqueles a quem não se destinam. Resumindo: (três) Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz


Música, por favor

Astor Piazzolla - Milonga del Angel




Correspondência, listas, fragmentos  - Casa Fernando Pessoa

*



Bom dia Bebé: gosta de mim exactamente? Não venho do Abel, mas devia ter vindo; e, em todo o caso, o Bebé também tem influência no estilo do Abel. Tem influências à distância, mas ao colo (situação muito natural nos bebés) ainda tem mais. E o Abel tem aguardente doce, mas a boca do Bebé é doce e talvez um pouco ardente, mas assim está bem. Gosta de mim. Porquê? Sim?

Estou doido, e não posso escrever uma carta: sei apenas escrever asneiras. Se me pudesse dar um beijo, dava? Então porque não dá? Má.

A verdade é que o dia de hoje se embrulhou de tal maneira, que mal tenho tempo de lhe escrever mal este pouco tempo. Vespa.

Tenho que ir a fugir para casa para jantar cerca das 8 e ir depois a casa daquele meu amigo onde costumo jantar aos sábados. Hoje, é ir lá um pouco à noite, depois do jantar. Fera.

E acabei, e pronto. Dá-me a boquinha para comer?

Íbis
(nome de uma ave do Egipto, que é essa mesma)

2-10-1929


Ofélia Queiroz, namorada de Fernando Pessoa
entre 1 de Maio e 29 de Novembro de 1920  e entre  11 de Setembro de 1929  a  11 de Janeiro de 1930



Fernandinho meu, e hoje muito bonito

Venho escrever-lhe, e por acaso à hora que me costuma telefonar (8h) porque como talvez saia com a minha irmã, depois do jantar, ficaria amanhã sem carta minha, se o não fizesse agora.

O meu amor, dispôs-me lindamente para todo o dia com a sua carta, e para completar, telefonou-me duas vezes, que me deixou ficar radiante.

Então o meu queridinho estava triste, estava? tinha razão, fechado numa gaveta, coitadinho!... Quem foi o patife que lá o meteu? Deve ter sido o Sr. Engenheiro, com certeza. Quantos socos já terá apanhado a esta hora? Quem me dera ser 'Mimi'... Dava-lhe muitos socos, mas por cada soco cinquenta jinhos... Quia? Dos tais, como o líquido que há no Abel. Depois do meu amor ter essa bebida à sua disposição já não vai mais ao Abel, pois não?

Vieram agora mesmo chamar-me para jantar, até já, é servido? Quem me dera tê-lo ao meu lado a jantar! Eu servia-o, queria?

Pronto, já papei, e papei bem porque estou contente, o meu amor com certeza tamem já papou. Quando papa comigo? Isto já parece qualquer coisa que que eu li há tempo, creio que do Santa Rita; o Preto papão que papava a papinha, qualquer coisa neste género que achei graça. (Ou o Papim, qualquer coisa que me não lembra agora).

Fica para sábado o nosso encontro, conforme combinámos pelo telefone, às 5 1/4, se convier ao meu Fernandinho, sim? Se puder, telefona-me?

Então o meu feio pergunta-me na sua carta se gosto de si exactamente? Gosto exactamente, gosto exactamente muito; gosto exactamente muitíssimo! O Fernadinho gosta de mim exactamente menos. Chama-me feia, vespa e muitas coisas feias, já vê que não gosta tanto de mim, que só chamos coisas menitas.

O Fernandinho ainda se lembra como eu sou, como é a minha cara? Há tantos dias que me não vê...

Tá melhorzinho da doidice?! Mas eu gostava de tê-o assim doido, como o indica a sua cartinha de hoje, e prezo-me de não ter nada mau gosto, porque eu sou uma rapariga de bom gosto.

Adeus querido amor, bonequinho meu, para eu brincar visto ser bebé. Até sábado, Tiozinho!

Uma noite muito feliz lhe deseja a muito sua

Íbis


3-10-1929

Fernando Pessoa (13 de Junho de 1888 e 30 de Novembro de 1935)



Terrível Bebé;

Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o Bebé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telefono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na boca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a boca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu ombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e porque é que a Ofelinha gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exactamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fosse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece impossível ser escrito por um ente humano, mas é escrito por mim

Fernando  

9-10-1929

(Nota: Existe, de permeio, uma outra carta de Ophélia datada de 5 de Novembro. Por razões de espaço, não a coloco aqui)

***


As três cartas aqui divulgadas constam do livro
Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz
da Assírio e Alvim, edição de Manuela Parreira da Silva.
 


***

Se não for abusar da vossa boa vontade, gostaria de vos convidar ainda a visitar o meu outro blogue, o Ginjal e Lisboa, a love affair. Hoje as palavras vêm num veleiro para se juntarem aos guerreiros que sobem à cidade para defender a palavra com Manuel Alegre ao leme. E, não é pela vitória de Espanha no Euro 2012 mas até era bonito que fosse, a música desta semana está a cargo de Manuel de Falla. Há castanholas (a sério) lá para os meus outros lados!

***

Mais uma voltinha, mais uma viagem, mais uma semana. 
E que seja feliz, a começar já por esta segunda feira. 
Divirtam-se, está bem?

8 comentários:

  1. Cara UJM,
    Bonitas cartas. Quando era mais nova escrevia cartas a torto e a direito e adorava receber cartas! As de amor ainda mais... depois com o passar do tempo uma pessoa deixa-se disso, o amor passa a viver-se diariamente e não raras são as vezes que nos esquecemos durante demasiado tempo de dizer o quão importante é a pessoa que está ao nosso lado. Conhece as cartas da freira Mariana Alcoforado e do seu amado Marquês de Chamilly? Sugiro uma visita ao museu regional de Beja, antigo Convento de Nossa Senhora da Conceição onde morou Mariana.

    ResponderEliminar
  2. Tenho o livro, mas não me entusiasmou, pelo contrário desiludiu-me.Se calhar não soube apreciar devidamente. Um dia destes volto a pegar-lhe.
    Já as de Mariana Alcoforado acho que vale a pena ler, gostei muito.

    Um beijinho e boa semana.

    ResponderEliminar
  3. Olá Cara MS,

    Também eu, em adolescente, amiga de escrever como sempre fui, escrevia que me fartava e como ficava ansiosa por ver se o carteiro me trazia carta.

    Depois acabou, perdeu-se a ocasião, perdeu-se o hábito.

    Conheço as cartas de Mariana Alcoforado sim e agora que me falou nisso andei à procura do livro e não o encontrei, tenho que ver onde está.

    E não conheço esse museu em Beja e, aliás, tenho que confessar uma coisa injustificável. Acho que nunca fui a Beja. Tenho desde há algum tempo parentes (acho que compadres e a respectiva família se podem designar por parentes) que são de Beja, muito ligados a essa cidade. Tenho que lá ir.

    Acho até que será passeio a fazer quando estiver de férias, dentro de pouco tempo.

    Agradeço, pois, a dica.

    Obrigada pela visita, pelas palavras, pela sugestão, MS!

    ResponderEliminar
  4. Olá Isabel,

    Tem este livro que saíu agora? Ou tem as cartas separadas, as dele e as dela? É que este tem a singularidade que valoriza muito a leitura e a compreensão daquela relação pois podemos ver o que ele diz, depois o que ela responde, depois os passeios que combinam, a seguir o que comentam do que conversaram, etc. Ou seja, embora seja um pouco voyeur da nossa parte, é engraçado e quase lúdico ver o carinho daqueles dois. É engraçado ver Fernando Pessoa, o poeta plural e com uma inteligência acutilante, enlevado e derretido em meiguices (embora ela seja mais, muito mais).

    Claro que não é o amor proibido, desesperado, de Mariana Alcoforado...

    Um beijinho, Isabel!

    ResponderEliminar
  5. UJM
    afinal menti sem querer. Peço desculpa.
    Fui ver qual era o livro que tenho e apenas tem Cartas de Ofélia a Fernando Pessoa. É da Assírio e Alvim, organização de Manuela Nogueira e Maria da Conceição Azevedo. Comprei-o segundo a data que lhe pus, em 2001 e estava guardado ali para um canto. Se calhar nunca mais lhe peguei e ontem quando li o seu post fiquei convencida que também tinha cartas do Fernando Pessoa. De qualquer forma sei que já li algumas dele, não sei onde. Por isso a minha confusão.
    Vou deixar aqui o livro à mão, para reler alguma coisa. Talvez o veja com outros olhos.
    Um beijinho

    ResponderEliminar
  6. Olá Isabel,

    Não mentiu: enganou-se...(é diferente). Calculei que fosse isso pois há alguns livros com as cartas dele e há outros com as cartas dele. O que este livro tem de diferente e o torna especial é que tem, por ordem cronológica a troca de cartas, percebendo-se a forma como interagiam.

    Lendo só as cartas dela parece infantil ou pateta, não é?

    Mas lendo aqueles mimos recíprocos, aquelas gracinhas que um diz, o outro comenta, etc, a 'coisa' ganha uma perspectiva diferente.

    Este livro é muito recente. Aparece, nele, escrito que a 1ª edição é de Setembro de 2012 mas é gralha pois eu já o tenho...

    Gosto muito de ler correspondências e tenho alguns livros de troca de cartas entre pessoas interessantes, nomeadamente entre escritores.

    Beijinhos, Isabel.

    ResponderEliminar
  7. Também gosto de ler cartas, diários, biografias (não que tenha lido muita coisa), porque nos mostram os autores, os artistas duma forma mais interessante.
    Vou ver se compro este das cartas, e mudar a minha primeira impressão.
    Beijinhos

    ResponderEliminar
  8. Isabel, também eu. Diários, correspondência, entrevistas. É uma outra dimensão. É a vida normal (e arte é transcendental).

    ResponderEliminar