domingo, julho 01, 2012

O homem do mato (... e as crónicas de Pedro Mexia no Expresso)


Música, por favor


Astor Piazzolla - Los pájaros perdidos



Quando eu era pequena, talvez até aos 4 ou 5 anos, a casa em que vivíamos pertencia a um conjunto de moradias que, nessa altura, estavam ainda relativamente isoladas no que, na altura, era ainda quase campo. Pouco a seguir, separado por uma estrada, era mato alto e árvores, uma zona muito extensa para que não se ia. A ideia que tenho, a esta distância, é que era uma floresta sem fim.

Por essa altura, era costume os miúdos da vizinhança juntarem-se todos a brincar à porta de casa. Contudo, a minha mãe sempre me avisava que não podíamos ir para longe de casa, muito menos para a tal estrada. O limite admissível era uma loja ‘multi-usos’ que havia no fim da rua, misto de mercearia, drogaria e creio que até posto de correio. No entanto, a grande tentação era um pinheiro enorme que havia logo a seguir debaixo do qual apanhávamos pinhões que depois comíamos, partindo-os com uma pedra sobre outra e, tentação ainda maior, um socalco de onde se via a estrada até ao longe e onde passava um pequeno ribeiro de água cristalina que vinha, por um aqueduto que passava por debaixo da estrada, do bosque do outro lado.




A minha mãe zangava-se muito a sério se sabia que eu, apesar de todos os avisos, me aventurava mais do que me era permitido. E assustava-me com ’o homem do mato’.

Eu, no meu íntimo, pressentia que aquilo era uma manobra de intimidação e questionava-a muito, querendo descobrir uma contradição: ‘Quem é o homem do mato? Onde vive? Que mal é que ele faz?’, etc, etc.

E as respostas eram sempre as mesmas: é um homem que vive lá para dentro do mato, no sítio onde há mais árvores, ninguém sabe exactamente onde, ninguém sabe quem ele é, dizem que teve um desgosto mas ninguém sabe ao certo, ninguém sabe de onde veio, ninguém sabe de que é que ele vive. E acrescentava sempre, ameaçadora: ‘Dizem que, quando aparece, tem um saco e dizem que ele costuma meter lá os meninos que apanha’. Eu ficava assustada mas apenas ligeiramente pois, apesar de ser muito pequena, sabia que aquilo era totalmente improvável.




Quando falava nisso aos meus amigos, eles confidenciavam que os pais também diziam o mesmo; mas também não acreditavam e, sabendo-nos consensualmente descrentes da veracidade da história, desvalorizávamo-la.

E, por isso, sempre que nos juntávamos, as nossas brincadeiras levavam-nos inevitavelmente para a zona proibida.

No entanto, um dia o improvável aconteceu.




Estando nas nossas inocentes brincadeiras, apareceu junto a nós um homem alto, de cabelo pouco cuidado, pelos ombros, barbas igualmente desarranjadas, mal vestido, todo ele mal composto, alguém como nós nunca tínhamos visto. E trazia um saco na mão. Não sei como ficaram os meus amigos mas eu, até hoje, lembro-me de como fiquei transida, imobilizada, gelada. Se o homem tivesse pegado em mim e me tivesse levado dentro do saco, eu não teria soltado um ai. Lembro-me, no entanto, que o homem sorriu, compassivo, olhou para nós e seguiu. Lembro-me que, mal ele se afastou, corremos a esconder-nos e assim ficámos por um bom bocado, à espreita, em silêncio. Passado um bocado, corremos esbaforidos, cada um para sua casa.

Lembro-me que só à noite ganhei coragem para contar o sucedido à minha mãe. Estava cheia de medo com o que se tinha passado e, também, porque já sabia que a minha mãe se ia zangar a sério. E assim foi.

A minha mãe já sabia. Já tinha corrido a notícia que o homem do mato tinha ido à loja. Contou que não era a primeira vez, de quando em vez, muito espaçadamente, isso acontecia. Saía do mato, ia até lá, e de saco abastecido (lembro-me de ouvir falar em fósforos, sabão, velas, mas provavelmente também comida mas disso não me lembro) voltava a entrar no mato. Ninguém sabia para onde, nem até quando, ninguém sabia de nada.

A minha mãe acrescentou ‘Mas eu não estava farta de avisar para teres cuidado? Sabe-se lá quem é ele, se é bom, se é mau.’





Mas eu lembro-me bem do seu sorriso e, a partir daí, pensei sempre nele como um bom homem. E, de vez em quando ainda me lembro do fascínio que essa figura passou a despertar em mim, alguém que vivia no silêncio do mato, livre, fora do tempo.

*

(Lembrei-me deste episódio verídico da minha infância porque há pouco, ao ler a crónica do Pedro Mexia no caderno Actual do Expresso e pensando que parece que as crónicas dele andam a perder o viço - sinto que há ali qualquer coisa de forçado, de arrastado (... ou será fadiga minha?) - me recordei de uma que ele, talvez há um ano, lá escreveu, numa altura em que o que escrevia me despertava atenção e me levava a ler com gosto até ao fim. Salvo erro, chamava-se qualquer coisa como ‘O caminho da floresta’, lembro-me que achei piada, estava bem escrita. E falava destas pessoas que, um dia, entram na floresta para não mais regressarem).

*

E, com isto, já estamos em Julho. Passa depressa o tempo. 

Seize the day. Carpe Diem. 

E tenham, meus Caros, um belo domingo!

4 comentários:

  1. Belíssima a sua história que ainda me fez rir.
    Também me lembro de ter ouvido recomendações dessas e embora eu fosse sempre muito "certinha", raramente transgredia, lembro-me de um ou dois episódios em que desobedeci e também apanhei sustos.

    Da forma como conta, esse parecia realmente um bom homem, que vivia metido na sua vida sem aborrecer ninguém. As pessoas assim ainda hoje causam estranheza e normalmente a tendência é julgá-las negativamente. É como tudo o que nos é estranho: causa medo.
    Apetece divagar sobre essa personagem. Quem seria e o que o levaria a viver sozinho.

    Quando era garota, também brincavamos na rua, podiamos ir até aos limites da cidade ( que na altura era bem mais pequena)sem medo. No Verão, nas férias era uma alegria. As crianças agora não têm tanta oportunidade de brincar assim.

    Bem, já me alarguei. Adorei ler o seu texto.
    Um beijinho e bom domingo

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  2. Pôr do Soljulho 01, 2012

    A vida mostrra-nos que a historia se repete.
    Na nossa meninice incutia-se o medo
    nas crianças para as manter sob control, com o papão do escuro ou com o homem do saco.
    Quando a minha filha nasceu alertei toda a gente, avós e tias de que não queria nada disso, nem cantilenas nas refeições.
    Hoje com a minha neta, habituei-a a que não se afasta de mim nunca nem fala com estranhos pois "há senhores que raptam meninas que nunca mais veêm a familia".
    Às vezes questiono-me se o deverei fazer, mas o medo que algo de mal lhe possa acontecer, lembra--me que o medo guarda a vinha.

    Agora Jeitinho, vou fazê-la rir.
    Tambem eu fui atormentada pelo homem do saco:

    Do alto do meu 3ºandar ouvia muitas vezes uma voz grossa que dizia qualquer coisa impreceptivel acabada em er, comer, não entendia e a curiosidade levava-me à janela. Aquele som vinha de uma figura baixa, com roupas escuras, na cabeça uma boina ou chepeu,sem forma e às costas um grande saco de sarapilheira.Repetia tudo mas eu só entendia o final errr...
    A figura amedrontava qualquer criança com sete ou oito anos naquele altura, quanto mais eu que deveria ter no maximo quatro. Foi-me dito que o homem do saco procurava meninas más e que não queriam comer.
    Uma bela tarde de Verão vejo o dito homem sair da Tv da Amoreira e subir a minha rua, recolhi-me mas fiquei atras da vidraça pois vi a senhora do prédio em frente chamá-lo.Lembro-me que o meu coração bateu mais rápido pois alí morava o João, um menino mais crescido que eu. A senhora deu-lhe uma alcova cheia de garrafas que ele meteu no saco, pô-lo de novo às costas e aí percebi:
    QUEM TEM TRAAAAPOS GARRAAAAFAS QUEIRAM VENDEEEER.
    Se o pobre homem soubesse que além de subir ruas imensas carregado de garrafas, qual castigo, ainda era temido pelas criancinhas ...

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  3. Olá Isabel,

    Pela forma como escreve, deduz-se mesmo que sempre deve ter sido muito certinha. Um descanso para a sua família...

    Pois eu não. Todas as minhas recordações estão polvilhadas de transgressões de toda a espécie e feitio. Nunca nada de sério, no entanto. Mas também só gostava de me dar com transgressores (e ainda me sinto atraída por gente dessa raça). O meu primeiro namorado mais a sério (ainda no liceu), no entanto, assaltava a casa das fotocópias para roubar os 'pontos' e depois era ameaçado de suspensão (e não era porque precisasse pois era excelente aluno, era apenas porque era um transgressor puro e duro), atirava bombinhas no carnaval para cima de polícias e ia passar a noite na esquadra, e mil outras coisas do género que me deixavam ainda mais perdida de amor - para grande preocupação dos meus pais.

    Quanto ao homem do mato. Vi-o essa única vez mas apanhei um susto tão grande que a 'cena' ficou-me gravada na cabeça e, de vez em quando, penso nele. Um dia destes vou falar nisso à minha mãe a ver se ela se lembra e se chegou a saber alguma coisa dele.

    Mas nem é só ele, em si, que me causa estranheza: é a opção de vida, são as circunstâncias que levam a uma decisão destas e como é que, depois, se cria a habituação a uma situação assim, de solidão absoluta no meio do mato. Será que se é feliz assim, longe de tudo?

    Beijinho, Isabel, e nunca escreve demais pois gosto de ler o que escreve.

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  4. Olá Pôr do Sol,

    Eu com os meus também nunca lhes criei medos, nada, nada de papões, escuros, nada. Talvez por isso hoje sejam tão descontraídos e bem dispostos.

    Agora com os pequeninos também ninguém usa esses medos mas eu já comecei a avisar o mais crescidinho para não se afastar de nós, para não se perder, etc. É ainda muito pequenino para o podermos avisar para mais riscos, acho eu, mas já falámos que tem que ser avisado pois é todo extrovertido, fala com toda a gente, tudo no maior dos à-vontades.

    E já me fartei de rir com esse seu medo, coitado do pobre senhor, estafado, rua acima e ainda a meter medo às criancinhas. Mas é o que diz a Isabel, receamos o que desconhecemos.

    Lembro-me que nós, pequeninos, para além desse 'medo' (relativo) do home do mato, tínhamos um outro medo. Uma vez um mais crescido, para nos meter medo, tinha dito que os carros encarnados roubavam meninos. E, então, nós, que sistematicamente nos afastávamos de casa para ir para além do pinheiro, para irmos espreitar a estrada grande, quando víamos um carro encarnado (e, nessas alturas, as ambulâncias eram encarnadas), deitávamo-nos no chão, cheios de medo, e só falávamos e nos levantávamos quando ouvíamos que o carro se tinha afastado.

    Como os riscos se alteraram tanto desde a minha infância até aos dias de hoje.

    Um beijinho, Sol Nascente!

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