Música, por favor
Nina Simone - After you've gone
E então, num fim de tarde, já bem ao cair da noite, a
minha amiga, a advogada e eu, sentadas perto umas das outras, perante um
conjunto de papéis, falámos sobre uma ideia do amigo caviar gauche (dito diseur
por uns, catalogado por bicha por outros). Passo a expor a ideia.
Sabendo que a
minha amiga andava a sentir-se com disponibilidade a mais e motivação a menos, desencantada, com os filhos fora de casa, o marido também tão pouco em casa, e
sabendo-a com formação em gestão e tão amiga das causas da ecologia e da sustentabilidade,
lembrou-se de a incentivar a formar uma empresa ligada ao ambiente, com algumas afinidades com algumas das actividades da grande empresa gerida pelo marido.
Lembrou-se ainda de que a dita grande empresa poderia ser a principal accionista. Seria bom em termos de capital, em termos de prestígio, de algum apoio a nível de backoffice. Lembrou-se ainda que um conjunto de amigos dele, engenheiros do ambiente,
biólogos, etc, poderiam dar corpo à ideia e que ela, a minha amiga, seria a
impulsionadora, a gestora. A advogada, ou alguém do escritório dela trataria da criação e registo
da empresa, licenciamentos e demais aspectos formais e legais.
Foi feito um business case, tudo parecia ter pernas para
andar e, nessa altura, apresentaram o projecto ao marido.
Ao falar-me na ideia, nos potenciais clientes, no
desenvolvimento do projecto, eu observava como a minha amiga dona de casa
vibrava, como os olhos brilhavam de entusiasmo, toda ela se empolgava como uma
verdadeira empreendedora. E contava-me como o amigo a tinha ajudado, como
tinham tido várias reuniões com o grupo de projecto, como todos acreditavam tanto no seu sucesso.
Mas, no entanto, quando apresentaram a ideia ao marido,
ele não tinha achado a ideia nada por aí além.
Insinuante, sinuosa, bela, perfumada - a advogada dela |
Mas pediu para analisar os dossiers e, passado algum tempo, começou a pedir informações e passou a querer ter reuniões
com a advogada e, às tantas, ela começou a perceber que o interesse parecia ser
outro e mais ainda quando ele lhe confidenciou que não estava interessado no
projecto por não querer misturar as águas, a esfera pessoal e profissional não deveriam misturar-se, mas que gostaria de a admitir a ela para a empresa, para o departamento
jurídico. E, ao relatar-me isto, a advogada mostrava-se indignada mas eu observava que ela parecia disfarçar um ar dengoso, ajeitava o cabelo, os olhos resvalavam, qualquer coisa ali me parecia não totalmente sincero. Mas talvez fosse apenas impressão. Ou isso ou os olhos excessivamente azuis.
E que, a partir daí, tudo se tinha azedado, contaram-me as duas.
Aqui a minha amiga fecha o rosto, endurece - que acha imperdoável ele nunca ter tido a franqueza de lhe dizer directamente que a empresa dele não ia entrar no capital. Andou a pedir elementos, a marcar reuniões com ela - e apontava para a advogada - e tudo na maior cara de pau. E que ela tinha abdicado de ter vida própria para lhe criar os filhos, para olhar pela casa, para o acompanhar, para o apoiar em todas as situações e que, agora que queria fazer qualquer coisa pela sua própria vida, ele reagia assim, com desprezo, com indiferença, sem a apoiar, sem se interessar sequer, que era um verdadeiro estúpido.
A minha amiga, ex dona de casa, futura empresária - - agora em estado de fúria, vingativa |
A bela advogada também se mostrava aborrecida, que o tipo é um convencido, acha que tudo pode, que é preciso ter lata para a querer contratar, que isto, aquilo e o outro. E a mulher abanava a cabeça furibunda, 'parvo, parvo'.
Eu olhava aquelas duas e tentava perceber se aquilo tinha alguma lógica. Perguntei: 'Então que papéis foram aqueles pela janela do carro....?' Olharam as duas uma para a outra, uma coisa rápida, fugaz, mas pareceu-me que pediam autorização uma à outra. A advogada disse: 'Era o contrato de trabalho que ele me enviou, para eu ir trabalhar com ele'. E olharam uma para a outra. 'Estúpido, levou com ele na cara', completou mas fiquei com a sensação que qualquer coisa me estava a escapar.
'Ficou muito abalado com isso, ele...', disse eu lembrando-me da indisfarçável tristeza dele naquela tarde.
Percebi outro rápido olhar e a mulher concluíu, 'é parvo'.
Era assim tão grande a pancada dele pela advogada que ficasse naquele desconsolo? E a mulher aceita isto assim...?
Mas ela, rosto fechado, outra que não a doce e conservadora que eu conhecia, disse, 'ah, ele vai pagar-mas, ah vai...' e eu percebi que ele corria esse risco, ela estava mesmo com cara de má.
A advogada continuou, 'mas o projecto não vai parar, o amigo dela, o diseur dá a maior força, o grupo de projecto está empenhadíssimo, vamos ver se arranjamos outros parceiros, achamos que coisa tem potencial'.
E a minha amiga, passando-me um volumoso dossier para as mãos, 'não queria dizer-te já, não queria dizer a ninguém antes de isto estar concretizado, pensava que podia contar com ele, mas face a isto tudo, agora gostava que desses a tua opinião, que visses se queres ajudar-nos'. E eu pensei, 'bolas, já me está a encrencar.'
Mas como escapar-me?
Com o dossier no colo, perguntei então para ver se desanuviava um bocado, 'mas, olha lá, ó menina, afinal o diseur é ou não gay?'.
Do lado gauche da vida, com muita classe, muito charme |
Riu-se, 'Claro que é. Mas não é uma bicha, longe disso. É discreto; do que me contou, lá tem os seus amores, mas tudo na boa, sem histerias, sem trejeitos. E é um bom amigo, não passo sem ele, é um apoio, um ombro, incentiva-me, acompanha-me, ensina-me. É um querido.'
Nisto ouvimos abrir a porta. Ela encolheu os ombros e, muito séria, disse, baixinho: 'olha, chegou o chinês'.
Quando passou pela sala e nos viu as três, ele quase deu um salto para trás, parecia que estava a ver o diabo em triplicado. De boca aberta, ali ficou estacado.
Escusado será dizer que nos desatámos, as três, a rir.
E ele com ar aflito: 'Mas que raio estão vocês as três a fazer juntas?'
A mulher esclareceu, seca: 'negócios'.
O meu amigo, executivo de sucesso, elogiado e bem pago |
Entretanto a advogada levantou-se e disse que tinha que ir. Reparei na cara dele. Impassível. Ela sorriu ao passar por ele. Ele mal a olhou. Se estava perdido de amores por ela, disfarçava muito bem.
Levantei-me também e despedi-me dos dois. Beijinho, beijinho.
Saí ao mesmo tempo que a advogada mas praticamente não falámos. Quando cheguei ao carro reparei que me tinha esquecido do dossier. Contudo, não me apeteceu voltar atrás.
Saí ao mesmo tempo que a advogada mas praticamente não falámos. Quando cheguei ao carro reparei que me tinha esquecido do dossier. Contudo, não me apeteceu voltar atrás.
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1. Relembro que, quem quiser ler todas as 'cenas' desta história, pode ir às etiquetas aí do lado direito, lá mais para baixo, e clicar em Folhetim.
2. Para quem estiver mais virado para piano e violino, Brahms neste caso, e para a poesia de Assis Pacheco e, já agora, também o meu textozito a propósito desse poema, pode clicar aqui para ir parar ao meu Ginjal e Lisboa, a love affair.
3. E a todos desejo uma boa quinta feira. É quase fim de semana, que bom. Divirtam-se, meus Caros Leitores.
Cara UJM:
ResponderEliminarPasso a passo segredo desvendado, porque afinal “o segredo não é a alma do negócio”. A sua amiga a querer ser empreendedora … tão fashion … a querer seguir os conselhos do Álvaro, a querer ajudar o país a crescer e o seu belo executivo de sucesso a querer todas as atenções , todo o reconhecimento e se possível os affaires só para ele, não é bonito! Ficou espantado diante da mulher. Presumo que ele a olhou sempre como um ser subalterno, divertindo-se com as suas futilidades e subitamente ela surpreendeu-o. Que se desengane o seu belo amigo … Creio que não vai levar a melhor…. Porque a mulher! , o que é o homem a seu lado ! Um Adão inocente, um Édipo perplexo, um Otelo cego!
Parece que há duas aliadas … agurademos!
Leanor pela verdura
Jeitinho amiga:
ResponderEliminarJá quase tenho pena do marido. Com duas mulheres e uma bicha inteligente, quase tão perigosa, como duas mulheres decididas e capazes, está arrumadinho da Silva.
Mas pena porquê? Ele estava a pedi-las! Achou que a mulher era uma coisinha bonita, boa para criar os filhos e receber os amigos e, ela mostrou-lhe que tinha miolos. Bate-se à amiga e, ela atira-lhe com os papéis na cara. No fim, entra uma bicha que sabe separar as águas, melhor do que ele.
Subestimam as mulheres e esquecem-se, que se nós tivéssemos a força física deles, o mundo era nosso.
São tão previsíveis, coitadinhos!
Beijinhos, amiga
Maria
ialses dekshCara novelista,
ResponderEliminarAs personagens deste seu folhetim estão cada vez mais interessantes. Gosto do facto de nenhuma ser inocente, pois as histórias de vítimas coitadinhas sempre me pareceram mal contadas. Continuo a imaginar a sua amiga na pele de Kristin Scott Thomas, mais apropriada à ideia que tenho dela, mais adequada à candura sem inocência. A advogada, parece-me adequadíssima à sua sósia brasileira; também me parece a mais manipuladora de todos.
O marido, como sabe, a minha personagem preferida, e o protagonista, valoriza muito o ex-médico santinho Patrick Dempsey. Talvez tenha entrado num jogo que não controla. É isso? E a narradora, estará também a ser manipulada? Tenho a impressão que ela e o CEO constituem a dupla com mais afinidades, menos artifício e menos secretismo malicioso...
Aguardam-se os próximos capítulos!
Olá Leonor que vem pela verdura,
ResponderEliminarOs homens são, de facto, um sexo fraco (em todos os sentidos). Têm é um trunfo sobre nós, mulheres.
Os homens, perante um risco, unem-se, não se denunciam, calam-se, escondem, mentem, e todos de forma coesa. As mulheres já não: dividem-se, encontram rivalidades mesmo quando deveriam unir-se, e, nessa altura, perdem poder.
É por isso que geralmente os homens levam a melhor.
Quanto ao meu amigo, é mesmo um gestor muito bem sucedido, talvez um pouco sobrevalorizado mas, o facto, é que as coisas lhe têm corrido bem.
A mulher tem-me surpreendido. Sempre aparentou ser uma dona de casa perfeita, que organiza belas festas e nunca lhe tinha visto outros interesses. Acho que foi depois dos 2 miúdos mais velhos terem ido para o estrangeiro e esta mais nova estar de partida, que resolveu, ela também, partir para outra.
Mas a história chegou ao fim, hoje, se tiver coragem, conto o que se passou hoje.
Mary, valente Mary,
ResponderEliminarConsigo é que nenhum homem se atreveria a pôr o pé em ramo verde. Deve ser das bravas! Acho imensa graça às suas observações, sempre tão acutilantes.
Mas, Mary, estas coisas nunca são tão a preto e branco.Os homens, especialmente estes que estão habituados a mandar e a ganhar, esquecem-se às vezes que não é tudo deles. Mas sabemos lá exactamente o que se passa lá em casa? Quando a gente lhes vê 'casos' é só porque deitam a mão a tudo o que podem ou há muitas 'meninas' que se põem a jeito? E o que leva um homem a trocar um casamento sólido de décadas por uma aventura passageira? às vezes custa a perceber mas já tenho visto de tudo e, se por vezes não se encontra explicação, a verdade é que também já me habituei a não fazer juízos de valor. Sabemos lá nós... não é?
Vamos ver se me encho de coragem para escrever hoje o último episódio...
(Primeiro ainda vou ali ao Ginjal para a minha empreitada diária. Só depois virei, de novo, aqui.)
Um beijinho, Maria.
Cara Leitora Enigmática,
ResponderEliminarPresumo que aquelas letras também enigmáticas no início do seu comentário resultem de uma luta travada com aquelas palavras horrorosas que a Google agora nos obriga a enfrentar...
Pois, Leitora, a minha amiga é muito parecida com a Kristin, toda ela é mesmo parecida. Fisicamente e na aparência de candura total, como se pecasse sem ser por mal, e sorridente, ingénua, moderna, cosmopolita, bom ar. Mas no outro dia recebi aviso no computador que uma das fotografias dela provinha de um site pouco seguro e agora fiquei com medo. Estupidamente virei para a Charlotte Rampling que não é exactamente o género dela.
E o meu amigo é o género do Patrick, mesmo, mas apenas fisicamente. Este é por vezes muito frio, seco, executivo puro e duro, às vezes é um convencido 'do caraças', sempre de reunião para reunião, às vezes alguma displicência a resvalar para a arrogância, e com a mania que consegue tudo o que quer e que dobra qualquer adversário. Mas tem outro lado, bem diferente, embora ultimamente quase não se veja esse lado.
A advogada praticamente não conheço mas fiquei com a impressão de que é manipuladora, 'atiradiça' não assumida. Mas não sei. Não me agradou muito mas pode ter sido apenas uma impressão precipitada.
Tal como referi na minha resposta aos comentários anteriores, se hoje conseguir ter coragem, acabo a história. Cheguei a um ponto em que não posso continuar.