Depois dos conselhos para encontrar e valorizar o seu estilo pessoal, do post abaixo, falemos agora, então, do segundo livro que ali referi, 'A primeira pessoa e outras histórias' de Ali Smith.
Leituras nas minhas ínfimas férias |
Ali Smith, de quem antes nunca tinha ouvido falar, é escocesa, tem 49 anos, vive em Cambridge, já recebeu vários prémios e é a autora deste livro de contos traduzido por Helder Moura Pereira em que, logo à entrada, ao lado da fotografia de um ramo florido de árvore, podemos ler:
"Nesta história concreta somos novas em relação uma à outra no sentido mais antigo do termo, bem, pelo menos faz-me sentir mais inclinada para o lado mais antigo das coisas. Não estou completamente certa de um corpo poder aceitar uma novidade tão fulgurante quando, como acontece com o meu, já passou por todas as novidades aceitáveis, as bem sinalizadas, as que é suposto termos: as dos anos da cintilante juventude, as de quando tínhamos entre vinte e trinta e julgávamos que sabíamos tudo, as das pretensões típicas da transição para os quarenta, as dos súbitos estremecimentos depois dos quarenta, etc. Mas isto. Isto é inesperado."
Os contos são bens escritos, trazem boas ideias, fluem como se conversasse connosco, como se fosse recordando ideias, revivendo situações, alinhando raciocínios.
Mas o que me faz trazê-la aqui é, acima de tudo, o conto O Filho. Li-o divertida, desconcertada.
Fez-me lembrar um post divertido da Ivone Costa, que gostei bastante de ler n' A ronda dos dias, a que ela deu o sugestivo nome de Baby-Terrorismo. Queixava-se ela, no seu vigoroso e inspirado estilo, das criancinhas que, perante a passividade dos pais, perturbam o ambiente dos cafés, esplanadas, restaurantes.
Pois bem, este conto relata-nos o que aconteceu à narradora um belo dia em que deixou o carrinho de supermercado já com algumas coisas, para ir buscar outras compras: quando lá voltou, encontrou, na cadeirinha, dentro do carrinho, uma criança desconhecida, perninhas roliças, ar de anjinho. Esperou que aparecesse a mãe assustada à procura do filho, esperou rir-se com a distração da mãe que ali teria sentado o fllho, não reparando que não era o seu carrinho, esperou, esperou mas nada. Até que foi às informações devolver a criança, explicando o sucedido.
No entanto, para sua perplexidade, nessa altura a criança estica os braços na sua direcção e chama-lhe mãe. Ela diz que não, que nunca viu a criança mas toda a gente, as empregadas do balcão e os clientes que ali se tinham juntado, a olha sem acreditar. A criança desata num berreiro e toda a gente lhe diz que pegue no filho ao colo. Ela insiste que não, que não é dela e a criança num berreiro. Até que, perante o inusitado da situação e a censura ímplicita que via nos olhares, ela cede e, sem perceber o que está a acontecer, constata que a criança a abraça calorosamente e pára de chorar.
Toda a gente lhe diz que a compreende, que crianças pequenas são assim mesmo, dão cabo da paciência de qualquer um, que é normal que ela, cansada, se tente ver livre do filho, mas que isso passa, aconselham que descanse, que tudo vai voltar ao normal.
Atrapalhada sai do supermercado com a criança, disposta a largá-la num sítio qualquer, entregá-la à polícia, qualquer coisa. Senta a crianaça no banco de trás do carro e parte, aflita.
Eis senão quando ouve, vinda do banco de trás, uma voz que diz: " És mesmo uma nódoa a guiar. Até eu fazia melhor - e nunca tirei a carta. Dá-se o caso de representares as mulheres em geral ou és só tu que guias dessa maneira horrível?"
Estupefacta, constata que é a criança a falar. Descreve ela a voz, ' Mas a sua vozinha tinha um encanto tão surpreendente que me fez rir, parecia tão jovem e nítida como um conjunto de sinos a tocar uma melodia bonita.'
E, a partir daí, o conto entra num ritmo espantoso com a criança a falar ininterruptamente sobre tudo, sobre a desvalorização dlibra, sobre casamentos homosseuxais, sobre tudo. E sempre com a sua loira e melodiosa voz de anjo. E daí parte para anedotas, anedotas, sem parar, e daí para anedotas picantes, depois anedotas ordinárias e ela manda-o calar-se e ele sempre com mais uma anedota, com piadas inconvenientes, e ela já passada e a criancinha, bela e rechonchuda, com piadas sobre mulheres, sobre condutoras, sobre política e ela desesperada, uma sucessão insuportável, até que volta ao supermercado e disfarçadamente enfia a criança noutro carrinho de compras. E. enquanto se afasta, ainda ouve a voz pura, sorridente e genuína da criancinha 'Porque é que invetaram os carrinhos de compras? Para ensinar as mulheres a andar nas patas e trás!'.
Ela foge, aterrada, temendo que alguém descubra que largou ali 'o filho'.
Uma piada! Fartei-me de rir.
Mas o livro tem outo género de contos, todos muito inteligentes, muito íntimos, muito bem escritos.
Gostei. Recomendo.
(PS: Deslize um pouco mais, com graciosidade e confiança deixe-se ir até ao post seguinte e saiba se tem estilo)
(PS: Deslize um pouco mais, com graciosidade e confiança deixe-se ir até ao post seguinte e saiba se tem estilo)
Obrigada pelo "vigoroso e inspirado". Tem dias. :)
ResponderEliminarFartei-me de rir!
ResponderEliminarVou comprar o livro para ter momentos de boa disposição e dissipar esta angústia que me vai na alma - a crise, o governo, impostos o que o Mangas diz devagarinho, muito devagarinho que me irrita, entre outras coisas da vida que acontecem e não deviam acontecer. Ontem o comentário da Becas foi meu. E porquê Becas?Porque estive ao telem numa longa conversa com uma amiga que me trata assim.
Vou voltar às criancinhas e contar o que o meu neto de 5 anos, que adora conversar, a semana passada, na praia, começou a brincar com uma menina que estava com a avó. No meio da brincadeira surgiu a conversa com a senhora e o meu menino disse apontando para o braço dela: "Porque é que tens assim o braço? Parece gelatina! A minha avó que vai fazer 100 anos também tem assim!"
A senhora achou graça, se fosse a Ivone como reagiria?
Dias depois novamente na praia a mesma senhora chamou o menino para brincar e conversar claro.
Mas ele é um menino bem comportado, sabe estar em espaços públicos.
Isabel
Olá Isabel ou Becas,
ResponderEliminarAgora quem se riu fui eu, com o seu menino maroto. As crianças são imprevisíveis na sua espontaniedade. Imagino a sua atrapalhação quando ele disse aquilo, a querer disfarçar...e com vontade de rir. Eu passo a vida a rir com as coisas que o meu diz (os outros dois fazem gracinhas mas ainda não falam).
Mas, de facto, há crianças que fazem perder a paciência a um santo. No outro dia, num restaurante, um miúdo chorou tão alto e gritou freneticamente todo o tempo que lá estive, que saí com a cabeça feita em água. E a mãe impávida e serena como se toda a gente no restaurante não estivesse já com os cabelos em pé.
Mas, enfim, é o que é.
...o conto da criancinha parece coisa do chifrudo, credo..., até me arrepiei.
ResponderEliminar'que medo!'