quinta-feira, junho 30, 2011

Pintar à mão livre, pintar sem regras, sem limites e a coragem necessária para fazer retratos infiéis (e Rothko, Picasso, Modiagliani, Chagall, Pomar, Paula Rego)

Há algum tempo que não pinto. Requer uma disponibilidade que não tenho tido. Contudo tenho muita vontade de o fazer. Não me considero uma pintora, mas nem pouco mais ou menos. Ser-se pintor, escritor, escultor é ter um dom que não é acessível a qualquer um e, quem tenha esta percepção e ame a arte, não se auto-intitulará artista de ânimo leve.

Grande amante que sou de pintura, a arte abstracta quase minimalista é a que maior impacto tem sobre mim.

aqui falei várias vezes de Mark Rothko cuja obra exerce em mim o efeito que as obras sagradas terão sobre outras pessoas.

Tríptico de Rothko - Capela Rothko

As grandes manchas de cor, as combinações, que parecem rudimentares, de cores em simples rectângulos quase monocromáticos, a mim produzem um inexplicável efeito de devoção, de recolhimento.

Também gosto de pinturas quase transparentes, claras, de uma luminosidade simples.

Pintura que adquirimos a um pintor de rua em Espanha

No entanto, quando pinto, e apesar de me esforçar para ser assim tão simples, por incrível que possa parecer a quem me ouve ou me lê, não o consigo.

Fragmento de pintura minha

Começo bem intencionada mas, sem me dar conta, uma torrente de cor começa a sair-me das mãos e, quase como se tivessem vida própria, as cores desatam a conjugar-se entre si, muitas vezes com textura (juntando materiais às tintas), a sobreporem-se, e, por mais que quase me obrigue a ser minimalista, não o consigo.

Fragmento de pintura minha

Outras vezes, se estou numa ‘fase’ mais figurativa, formam-se frequentemente associações de ideias que tenho dificuldade em explicar de forma elaborada e sincera ou saem-me figuras provocadoras que me divertem mas que não sei a que propósito vêm – mas, o engraçado, é que não é deliberado, muito menos planeado (e, que não se pense que estou a fazer género, porque não estou mesmo).

Geralmente, quando começo a pintar não tenho a mínima ideia de qual pretendo que seja o output final, vou indo, num prazer infantil de fazer o que me vem à cabeça, sem me coarctar, sem me tentar autocontrolar.

Estou simplesmente a fazer uma coisa de que gosto, sem ter que dar justificações a ninguém – uma coisa totalmente à vontadinha, sem qualquer pretensão.

Mas há uma ‘modalidade’ que me obriga a ser o oposto do que sou: o retrato. Já tentei umas duas ou três vezes fazer retrato e, justamente, com uma das pessoas que melhor conheço, a minha filha.


Antes de prosseguir, devo dizer que sou autodidacta em absoluto. Acho que, para aquilo que faço e da forma que faço, só pode funcionar assim: na total ignorância. Não consigo sequer conceber qualquer tentativa de domesticação de uma coisa que só poderá dar-me prazer se for assim, a vol d’oiseau, sem regras, sem preceitos, sem ensinamentos, sem limites.

Fragmento de tela em que retrato a minha filha, que geralmente não tem o bronze que aqui lhe dei

 Mas, então, voltando ao retrato: é para mim a total contradição dos termos pois se, por um lado, nisto como em quase tudo na vida, só funciono bem sem receitas, sem guiões, em absoluta liberdade, por outro, para ser retrato, deverá ser a reprodução do que se vê. E então é uma violência. Fico exausta, psicologicamente exausta – é uma luta que dificilmente alguém consegue perceber.

Luto para que, olhando para o quadro a veja tal como ela é em pessoa, a boca, a forma como sorri, o olhar mas, quando vou aplicar a tinta (e, na prática, tudo se resumo a isso: a escolher as cores certas, a dimensão de cada pequena mancha de cor), apetece-me por exemplo, conter-lhe o sorriso ou reforçar o olhar lateral mas, ao fazê-lo, os lábios já perdem um pouco do volume que os caracteriza, ou o olhar fica mais transversal do que costuma ser na realidade. E, então, corrijo (o que em pintura não é tão fácil como apagar com borracha) e forço-me a restringir-me ao que é, tal e qual mas, no último instante lá me desobedeço e acentuo o brilho numa maçã do rosto e depois, vendo de longe, já não é bem ela e volto e volto e volto. Uma luta, uma luta que só visto.

Por isso, evito fazer retratos. Fico extenuada e descontente.

E depois chega ela e toda a gente que a conhece e, mal vêem o quadro, exclamam, de imediato que é ela mas depois, inquisidores e picuinhas, põem-se de lado, ‘ah, há ali qualquer coisa naquele canto da boca que não é exactamente dela’ ou ‘o sorriso não é bem, bem, bem este’, e eu fico frustrada, derrotada.

Mas vejo depois os retratos feitos por pintores que admiro (retratos e auto-retratos) e os de que mais gosto são justamente aqueles em que os artistas se estiveram nas tintas para a reprodução fiel do modelo.

Quando vejo um retrato muito ipsis verbis acho que mais valia uma fotografia.

Só gosto quando há uma distorção, uma visão adulterada da verdadeira imagem (adulterada porque o pintor foi capaz de cometer adultério em vez de se manter fiel à imagem fotográfica do modelo) e isto porque me parece ver a imagem decantada pela mente do artista ou seja – a ver se me consigo explicar – a imagem incorporando a mais valia da criatividade do autor.

Veja-se Picasso e os fantásticos retratos das suas várias mulheres e amantes (Fernande, Eve, Olga, Marie Thérèse, Dora Maar, Françoise, Jacqueline),

Aqui Marie-Thérèse, em fotogafia e numa das muitas telas de Picasso

veja-se Modigliani e as longilíneas e carnudas imagens de Jeanne Hébuterne;

Jeanne, mourir d'aimer

veja-se Chagall e Bella,

Bella e Marc Chagal, fotografia do casal

Bella a sua tão amada primeira mulher que com ele voa, em sonhos,

Bella e Chagall, pintura de Marc Chagall

ou veja-se o exuberante Mário Soares na galeria dos Presidentes em Belém tal como Pomar o vê (e tal como eu e tanta gente também o vê)

Mário Soares por Júlio Pomar

ou o introspectivo Sampaio segundo a nossa querida Paula Rego.

Jorge Sampaio por Paula Rego

Alguém se lembra de estar a ver se o olho está exactamente à distância certa da base do nariz ou se a narina esquerda tem os milímetros exactos que tem na realidade?

E, em termos artísticos, há lá comparação com retratos que não passam de maçadoras reproduções?

[Eu é que ainda não consegui vencer esta barreira de fazer um retrato em que a figura tenha um olho na testa e a boca na ponta do nariz...Também ainda não venci o receio da não aceitação por parte do modelo que tende a querer ver-se igual a quando se vê ao espelho… Por isso, para evitar esta luta inglória, quando me atirar de novo ás telas vai ser, com certeza, na base da enxurrada de cores, estou cheia delas, tanta, tanta cor.
Fragmento de uma tela minha: cores, cores e mais cores

(Pode parecer imodéstia minha colocar-me aqui ao pé de pintores que admiro mas não é. Eu não sou pintora e eles são mais que pintores, são génios. As imagens destinam-se a ilustrar o texto, apenas isso) 


E, já agora: Be happy. Encham a vossa vida de cor, de luz, de poesia, de alegria. Be happy!

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