quarta-feira, junho 29, 2011

Sou da beira do mar, respiro a maresia, voo com as gaivotas

Sou da beira do rio, sou do pé da praia. Nasci, sempre vivi e trabalhei em cidades que têm um rio que desagua no Atlântico.

Praia no domingo ao cair do dia: uma beleza total, quase virtual

Talvez por isso, é de rios com alguma bravura, que procuram o mar, que têm sal, que têm cheiro de maresia, que eu gosto. Rios mansos, contemplativos, ou riachos saltitantes, não me despertam tanto interesse.

Passear nas margens dos rios e frequentar praias de oceano foi sempre uma constante na minha vida.

Este fim de semana barco de guerra faz-se ao largo, passando em frente do Padrão das Descobertas

Ver os navios que cruzam os mares e os rios é, desde sempre, um prazer de que não me canso.

Durante muito tempo andava de barco para ir para a praia ou para ir do trabalho para casa e vice-versa. O bulício de quando se entra e sai, as manobras de atracação, os salpicos na cara de quando se vem cá fora, tudo isso tem para mim um encanto especial.


Grandes navios de carga há pouco, entrando no Tejo - e, na margem, pescador 

Há alguns anos desempenhei funções que me permitiram arranjar o pretexto de querer assistir à carga e descarga de grandes navios. Tenho pena de, na altura, não ter fotografado o que vi porque, por palavras, é de difícil descrição. A descarga de grande graneleiros de 10.000 toneladas ou mais, ver cá de cima as máquinas carregadeiras no porão a parecerem brinquedos, ver os homens como formigas a limpar no porão, todos cobertos de pós, quase indistintos, é qualquer coisa que não se esquece, imagens que na minha memória se assemelham às reportagens de Sebastião Salgado.

Visitei também outro tipo de grandes navios, navios que são autênticas fábricas, com tripulação altamente especializada.

Lembro particularmente uma vez em que o comandante era russo e que me recebeu com todas as honrarias, fazendo a meu pedido, mas com todo o orgulho, uma visita guiada. Fiquei perplexa e maravilhada pela complexidade, pela dimensão destas enormes fábricas que deslizam nos mares. Depois, no fim, já na zona de convívio, sorridente, disse-me que tinha uma surpresa: que a mulher estava a bordo e gostaria de me conhecer. Contou-me que a mulher às vezes o acompanhava porque estas viagens são longas e porque assim, quer ele, quer ela, sempre atenuavam a solidão e, além disso, quando tinham tempo podiam sair, os dois, a conhecer as cidades em que atracavam (o que muitas vezes não acontecia porque devem minimizar o tempo de permanência nos portos).


Saiu, então, para a ir buscar e então é que eu fiquei mesmo perplexa. Apareceu-me uma russa de uns trinta e tal anos que parecia irreal. Tal e qual uma boneca do princípio do século passado, mas uma boneca em ponto grande. Muito branca, muito loura, com o cabelo apanhado em cima, no alto da cabeça, com um penteado artístico, onde se via uma fitinha cor de rosa, vestida com um vestido muito cintado, cortado na cintura, com uma saia muito rodada, bordado, tudo em tons de cor de rosa, com uns brinquinhos que pareciam de brincar, toda ela sorria, os lábios pintados de cor de rosa tal como as grandes unhas, nem sei descrever melhor, era mesmo como aquelas bonecas que dantes, em algumas casas, se punham em cima das camas.

Eu, perante aquela aparição, e vendo o marido, o comandante, também todo orgulhoso por ter uma boneca destas para mostrar, devo ter ficado um bom bocado de boca aberta mas depois, claro, lá me recompus e falei durante uma boa hora com a simpática senhora que me contou que passam meses sem ver nenhuma mulher, sem ter com quem conversar, que tinham ficado muito felizes quando souberam que uma mulher queria visitar o navio. Não deve ser nada fácil a vida destas pessoas que estão sempre em trânsito.

Hoje ao fim do dia, cais de Sta Apolónia, com as infraestruturas portuárias (o belo edifício da gare de caminho de ferro a azul, à esquerda)

Eu adorava aquele ambiente portuário, de estivadores, de máquinas e guindastes, de gente muito directa, muito operacional, com comandantes das mais diferentes nacionalidades. Temia aquelas escadas íngremes e altíssimas a que tinha que subir se queria ir dentro do navio mas ansiava pela adrenalina da situação.


Há pouco, ao cair do dia, pescador à linha, e Lisboa logo ali

Mas, para além desta experiência mais específica, sempre gostei de ver os pescadores de beira de cais ou de beira de praia, de estar atenta aos movimentos da extremidade da cana, perceber se o peixe está a ‘picar’, apreciar o orgulho dos pescadores quando se sentem observados no momento em que tiram o peixe da água. E gosto do cheiro dos cais, da maresia, dos limos junto aos pilares ou das rochas, dos mexilhões em cachos, do anoitecer fresco. Tal como gosto de praias com mar batido, da espuma da rebentação, da humidade do ar do mar, das cores transparentes das algas.

Praia este fim de semana

E gosto das gaivotas de longas asas que se elevam e sobrevoam os ares, elegantes, soberanas.

Cada vez mais, preciso de ver e de respirar o ar dos mares. É essencialmente de lá que vem o oxigénio de que me alimento.

E depois, para temperar, regularmente, recolho-me no campo, na terra, nas rochas, no mato, na sombra das árvores, no silêncio. No entanto, às vezes, quando o vento sopra na folhagem dos choupos, do outro lado da estrada, parece-me ouvir o mar.


[Nota: Se anda à procura de um Consultório Sentimental não se enganou: é aqui mesmo, um pouco mais abaixo, logo a seguir à Madame Lagarde]

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