Quando, há muitos anos, aterrei em Luanda tive uma sensação estranha. O ar era morno e húmido, muito diferente do ar que eu conhecia. As ruas eram diferentes das ruas que eu conhecia. As praias também eram outras. Parecia que tinha entrado num mundo que, embora sendo habitado por humanos, era um mundo muito diferente daquele que eu conhecia.
Estou a viver este natal da mesma maneira. Reconheço os símbolos, fiz algumas compras, vejo as iluminações de natal. Reconheço que estou no natal. Mas é um natal que me é um bocado estranho.
Quando penso no que terei que cozinhar, parece-me que é coisa distante, que 'até lá não me doa a mim a cabeça'. Disse ao meu marido que deveríamos decorar a casa, pôr luzinhas. Também anda cansado, disse que não. E eu também não.
Todos os dias, uma parte significativa do dia é retirada ao que era tempo gerido por nós. Saímos pouco depois de almoço e regressamos já tarde. Hoje não vim de lá assim tão tarde mas tive que ir ao supermercado. Mas no supermercado estava um bocado desorientada, não me lembrava exactamente do que já tinha ou não comprado. Trouxe algumas coisas repetidas, a mais. E tento perceber como vou gerir o tempo para fazer o que é preciso e fico sem saber bem pois fazem-me falta as horas em que não vou estar em casa.
Também não tenho a certeza de que tenha todos os presentes.
É que, em cima de tudo, há os telefonemas, alguns longos. Hoje estava a fazer o jantar, e já era quase nove da noite, vi que uma das minhas primas tinha ligado para a minha mãe. Como tenho o telemóvel dela comigo, devolvi a chamada e, claro, estive a explicar a situação. Ficou também muito surpreendida e, como é médica e logicamente quer compreender o que se passa, a conversa foi detalhada e, portanto, longa. Pelo meio aparecia o meu marido a querer saber o que poderia ele ir fazendo ao tacho que estava ao lume. Acabámos de jantar tardíssimo. Mas gostei bastante de falar com a minha prima. A especialidade dela é outra, diria mesmo que está nos antípodas, mas aventou umas hipóteses que talvez expliquem algumas coisas. E como fala sempre com uma total objectividade e franqueza transmitiu-me algum do seu pragmatismo.
No hospital hoje também tive uma boa conversa com uma das médicas e ao senti-la com as mesmas perplexidades com que me debati no último ano e meio (mais coisa menos coisa) também fiquei como que mais resignada, como se fosse mais uma prova de que não houve burrice da minha parte por não ter percebido o que se passava já que nenhum dos muitos médicos e enfermeiros que se têm ocupado dela também não percebem. Não que isso resolva alguma coisa mas ouvir o que dizem, ouvir o que pensam ser as perspectivas e as abordagens, atenua um pouco a minha preocupação. Vejo que toda a gente, mesmo com dúvidas, ao verem goradas as tentativas, isto é, quando as terapêuticas não resultam (mesmo que não percebam porquê), não desistem, tentam e tentam, uma e outra vez.
Portanto, no meio disto tudo, constato que, apesar de tudo, vou conseguindo estar mais calma. Claro que venho de lá sempre angustiada e apreensiva, com severas dúvidas existenciais, severas, severas. Mas começo a encarar as coisas com menos dramatismo, com uma maior dose de aceitação.
Mas isto desconcentra-me do espírito natalício. Tomara que consiga abstrair-me quando estiver com a família, em especial com os miúdos. O natal deve ser um dia feliz e, em especial para as crianças e jovens, deve ser um dia leve, alegre, luminoso. Os miúdos sabem qual a situação da bisavó e têm pena mas a sua vitalidade e dinamismo é mais forte, e ainda bem.
Volta e meia lembro-me do mais velho ter perguntado, há uns anos, certamente há uns quatro ou mais, ou seja, deveria ter uns dez ou onze, talvez nem isso, se o bisavô afinal, naquela vez, tinha sobrevivido. Achei imensa graça na altura. Quando o perguntou, o meu pai estava vivo mas acamado e, quando os miúdos lá iam, queixava-se imenso que faziam muito barulho, ficava muito incomodado, pedia para se fechar a porta do quarto. Por isso, os miúdos estavam lá, brincavam na sala ou no jardim, lanchavam, andavam na boa, mas acabavam por nem ver o bisavô. Nos últimos tempos o meu pai estava praticamente cego, estava surdo e mal falava pois estava com sonda nasográstrica e, por fim, também oxigénio. Por isso, já nem levávamos os miúdos ao pé dele pois sabê-los a verem-no tão diminuído só o faria sofrer. Mas esse meu neto referia-se a uma vez em que, na sequência de uma pneumonia, o meu pai entrou em descompensação e informaram-nos do hospital que, se queríamos despedir-nos dele, era melhor irmos de imediato pois poderia não chegar à hora da visita. O meu genro trabalhava fora pelo que ela pegou nos filhos e foi. Fomos cada um à vez à dita despedida, o meu pai completamente off no meio de outros tão ou mais off que ele. E os miúdos, logicamente, ficaram cá fora. Apesar de perceberem a gravidade da situação, pequenos como eram, deveriam estar na brincadeira um com o outro. E, passados ano e tal ou dois anos, já nem sei, lembrou-se de perguntar se o bisavô tinha sobrevivido daquela vez.
Um outro, já não sei na sequência da morte de que bisavô, perguntava-me o que é que acontecia para que, de repente, tivesse virado esqueleto. Eu nem percebia a pergunta. Depois percebi que pensava que a pessoa morria e acto contínuo se transformava imediatamente em esqueleto. No meio da situação triste, lembro-me de me dar imensa vontade de rir.
Mas, enfim, não é conversa para as vésperas de Natal. Que disparate. Caraças. Peço desculpa, a sério. Caraças. A sério que tenho tido indícios de que não ando a bater bem da bola e isso preocupa-me. Parece que ando desmemoriada, obcecada, parva. Esqueço-me das coisas, ando com a cabeça nem sei onde. E nunca sei onde deixo o telemóvel ou as chaves. E combino coisas das quais me esqueço quase instantaneamente. Digo que é porque, na rectaguarda da minha cabeça, ando com mil outras preocupações mas começo a achar que é de mais. A ver se não dou em maluca. Que chatice. Só faltava mesmo, no meio disto, ainda eu pôr-me maluca.
Pronto. Calo-me. Não vos maço mais.
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Desejo-vos, isso sim, um bom Natal.
Desejo-vos dias felizes, muita saúde, muita harmonia, boa disposição. Desejo que saibam dar graças pela vida e pela beleza que nos rodeia. Desejo-vos boa sorte. E tudo de bom.
E peço desculpa por não agradecer comentários e mails, sempre tão carinhosos e amigos. Parece que a minha energia se esgota ao escrever isto, já não dá para mais. Não levem a mal. Isto é mesmo uma questão física, acho eu (falta de bateria ou coisa do género).
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Aqui chegada, penitencio-me pelo que escrevi, totalmente a despropósito da quadra festiva. Só não apago porque senão ficaria com o post em branco. De qualquer forma, para tentar compensar o disparate, partilho um vídeo muito bonito de ver. O grande, o talentoso Jon Batiste e a sua mulher Suleika, que está a tratar-se de uma leucemia, abrem-nos a porta da sua casa. E é uma casa maravilhosa. E eles também o são. Quanta empatia, quanto amor, quanta alegria.
Feliz Natal para si e familia e que tudo passe, para voltar a escrever as suas crónicas !
ResponderEliminarA.Vieira
Cara UJM
ResponderEliminarE que bela "diferença" a de Angola?! O cheiro do ambiente, as cores da "chita" na roupa vestida, o marisco, o peixe fresco grelhado(o meu linguado inesquecível), as discotecas, Alvalade no seu perfume feminino de frescas elegâncias em traje noturno no cinema a céu aberto, o hotel trópico ao fim da tarde quando havia "cobres" no bolso, (Dios mio), aquela baía que percorria na minha moto...Porra! que lembrança que a UJM me catapultou.
UJM.
Boas Festas.
Caríssima UJM
ResponderEliminarNão consigo. como certamente muitos dos seus amigos-leitores atinar com o razão clínica ou não do seu padecer.Todavia surpreendeu-me o último parágrafo do seu post.O que relata dos esquecimentos e desmemórias é "normal"( ?) a partir de certa idade, e eu que o diga, e não me parece um problemão desde que se admita como normal.Possivelmente estarei a simplificar tudo por ignorância mas será que estará a auto mutilar-se sem razão a UJM que para mim sempre foi uma força da natureza e que poderá resnascer como uma fenix.Eu apresar de clinicamente doente estou em pausa de tratamentos Há nove meses ( sem nascimento de criança) e não penso no que aida me podederá vir a suceder.Quando arricar envio-lhe a minha nova produ~ção natalícia.. ânimo e AVANTI POPOLO!!!!
JOAQUIM CASTILHO