sexta-feira, março 24, 2023

Carpir ou dançar. Ou rir.

 

Os dias não têm andado fáceis. Mantém-se a situação de que ontem falei, agravada pelo vazio comunicacional. Ninguém informa sobre nada e, se ligamos para lá, ninguém atende.

Acresce que, com a carga da bateria a esvair-se, o contacto com ela tornou-se diminuto.

E assim foi o dia até que, ao fim da tarde, finalmente, depois de inúmeras, longas e pacientes tentativas, alguém atendeu e aí, ao dizer o nome dela, aconteceu o milagre. Informação: que estava a fazer outro exame e que ia pedir ao doutor para me ligar. Fiquei de boca aberta. Duvidei até que acontecesse.

Mas, na realidade, ele ligou-me e combinou falarmos in loco.

Quando cheguei, senha tirada, eis que chega a minha vez. A senhora do atendimento muito admirada, o médico combinou uma conversa? Duvidou e duvidou como se eu estivesse a querer dar algum golpe. E eu que sim, que ele me tinha ligado e que tínhamos combinado. Ela fixa em mim -- marcou? com esse doutor? -- perscrutando-me, antevendo o momento em que eu ia vacilar. Mas aguentei firme. 

Então deu-se por vencida: foi ao sistema, depois disse que ia lá dentro. Desapareceu. Apareceu algum tempo depois, dizendo que não sabiam desse médico mas que eu esperasse que, quando ele aparecesse, logo me chamavam.

Mas eis que uma funcionária, fardada, que ali estava para tratar de outra situação, me disse que era médica e que podia falar comigo sobre a minha mãe. Perguntou-me se eu era filha dela. Fiquei admirada. Admiradíssima, melhor dizendo.

Fomos para um espaço mais privado. Simpatiquíssima, estava ao correntíssimo, conversámos, uma conversa tranquila, e, entretanto, referiu o contacto que um colega tinha recebido de um familiar nosso ligado ao sector.

Abro um parêntesis para enquadrar o ambiente de hoje. Podendo parecer impossível, a verdade é que aquilo estava ainda mais cheio. Dir-se-ia que ingerível. As urgências a deitar por fora, desde a rua à sala de espera. Ambulâncias, gente em macas, gente em cadeiras de rodas, feridos, achacados, gente estranhamente obesa com ar infeliz e muito doente, gente encolhida -- um pouco de tudo. 

Levaram-me, então, ao pé da minha mãe. Até lá chegar, passei por corredores lotados de macas, umas a seguir a outras, e gente doente ou acidentada em cadeiras. 

É o grau zero da dignidade: uma pessoa doente, numa maca, num corredor, por onde passa um e outro. E uma pessoa dependente, vulnerável, ali exposta. Uns choram, outros chamam. Os outros não ligam. Cada um está entregue ao seu próprio sofrimento.

Até que cheguei ao espaço onde estava a minha mãe. Uns tossem, afogados em expectoração, outras gemem e gritam, uns dizem maluqueiras e querem arrancar tubos, outros com ar sofredor e infeliz.  

Contudo, pelo menos connosco, os funcionários amabilíssimos. O médico foi lá ter e conversámos, ele com tranquilidade e extrema simpatia. A enfermeira e as assistentes técnicas também amorosas. As auxiliares atentas e delicadas.

E eu fiquei a pensar se esta disponibilidade e simpatia teriam um pouco a ver com o contacto referido ou se, portas adentro, são sempre assim, amorosos, dedicados, competentes. E, para que não fiquem dúvidas, o contacto foi apenas para saber o que se passava com a minha mãe pois eu não sabia o que se passava para ela lá continuar. Não foi para pedir o que quer que fosse, apenas uma informação. Temos também lá um familiar muito próximo com um cargo de direcção e a quem não falámos na situação da minha mãe para que não ficasse a ideia de que queríamos algum tratamento diferenciado.

Ou seja, pode acontecer que, vencendo aquela caótica barreira da multidão da urgência, lá dentro haja dedicação, atenção, cuidado.

A minha mãe ainda lá continua e para onde foi não deixaram que levasse telemóvel. Por isso, não sei se amanhã terei alguma informação ou se vai ser outra luta para conseguir saber alguma coisa.

E volto a dizer o que ontem referi: há ali um nítido problema de organização. Horas e horas e horas. Há muito doente impaciente, muito familiar cansado e desinformado. Tudo se atrasa, tudo se acumula, todo o ambiente se degrada.

Não há dúvida que deveria voltar a haver Serviços de Atendimento Permanente (SAP) para ficarem com muitos doentes a montante e não irem todos cair nos hospitais. Se calhar deveriam estar equipados com alguns meios de diagnóstico mais simples (recolha de sangue e urina que fossem enviados para laboratórios, 24 horas x 7 dias ou raios X).

Contudo, apesar de isso me parecer vantajoso, admito que não é indispensável pois até poderia, por uma questão de sinergias, não se optar por descentralizar os serviços. Mas, então, deveria haver uma triagem que segregasse para instalações distintas, com equipas distintas, tudo o que fosse mais simples e tudo o que fosse caso grave. Assim, como está, tudo ao molho e fé em deus, se aparecem mais casos graves, ficam os outros a penar por horas infindas, gerando o nefasto efeito de acumulação.

Além disso, deveriam ter um sistema humanizado, sistemático e atempado de informação aos familiares. Senão, por cada doente, há pelo menos um familiar desagradado. Isto quando não se junta toda a numerosa família, armando uma barulheira que incomoda.

Enfim, não há como negar que há na Saúde um problema complicado. Contudo, penso que as soluções não serão forçosamente nem muito complexas nem muito dispendiosas. Há em gestão um conceito que dá pelo nome de quick wins, ou seja, ganhos rápidos, ou seja, medidas fáceis que trazem ganhos quase imediatos. Seria bom que, antes de se pensarem em grandes soluções e grandes investimentos (antes ou, pelo menos, ao mesmo tempo), se enveredasse por uma abordagem mais modesta, tentando obter quick wins. Envolvam-se as equipas, peça-se que avancem com sugestões, peça-se ajuda a outros que noutras unidades (públicas ou privadas) já façam melhor. É que não há dúvida que é preciso arregaçar as mangas e deitar mãos à obra.

E é isto. Vou descansar.

Mas para que isto não fique uma pessegada difícil de tragar, deixem que partilhe convosco um vídeo de dança que talvez anime quem se sinta desanimado com estes temas.

James Last - La Cumparsita


Um dia bom
Saúde. Força. Paz.

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