quarta-feira, dezembro 07, 2022

A minha prima

 

Não sei se alguma vez disse à minha prima, ou se alguém lhe disse, que fui eu que sugeri o nome dela. Eu devia ter uns cinco ou seis anos e ouvi numa entrevista na rádio o nome da filha de uma cantora que, à data, era famosa. A minha tia tinha ido para casa dos pais depois de ter a bebé e foi lá que os fomos visitar. Perguntaram-me como é que eu queria que ela se chamasse. E saiu-me esse nome. Ao ouvi-lo, pareceu-me um nome incomum, muito bonito, um nome de princesa.

A nossa diferença de idades levava a que as nossas brincadeiras andassem um bocado desfasadas. Mas, apesar de muito mais nova, eu gostava de brincar com ela. E ela de brincar comigo. 

Quando brincávamos juntas, eu era a cabeleireira e penteava-a a ela e às bonecas ou era a merceeira e vendia-lhe produtos a peso e fazia trocos numa máquina registadora. Ela, pequenina, era a médica e fazia-me curativos, auscultava-me, via-me a garganta, tratava das minhas filhas, bonecas doentes.

Sempre fomos muito diferentes. Eu gostava de brincar na rua, tinha muitos amigos, rapazes e raparigas, era respondona, com uma vontade própria muito determinada, sem receio de enfrentar os meus pais. Ela sempre foi muito de estar em casa, sempre muito chegada aos pais, muito educada. Sempre fui de me divertir e namorar e, para estudar, sempre fui mais de 'apanhar no ar' e estudar sobretudo o que sentisse que devia ser aprofundado ou treinado. Ela sempre foi o meu oposto: muito disciplinada, muito bem comportada, muito estudiosa. Era aplicada, obediente, estudava horas a fio com a mãe. A única vez de que me lembro de estudar com a minha mãe foi na preparação para os exames de admissão ao liceu e havia sempre zaragata, lembrando-me inclusivamente de, numa das vezes, a minha mãe acabar a chorar. Se calhava eu ter algum erro (nos ditados) ela queria que eu escrevesse essa palavra umas quantas vezes. Eu recusava-me. Coisas assim. Uma luta. Ela era professora, queria que eu seguisse a disciplina que ela impunha nas aulas dela. Não conseguia e sentia-se frustrada.

Ao passo que eu andava frequentemente meio despenteada, com roupas que, na altura, pretendiam ser mais 'alternativas' (Porfírios, por exemplo), ela sempre andou muito bem arranjada, sempre se vestiu com boas roupas, boas marcas. A minha mãe dava-a muitas vezes como exemplo: vê lá se a tua prima anda assim. Claro que sempre me entrou por um ouvido e saiu por outro. O estilo dela condizia com ela: respeitável, exemplar.

A verdade é que sempre senti admiração pelas pessoas diferentes de mim. Não sei como conseguem. 

Foi para Medicina, claro. Sempre muito boa aluna, sempre mantendo a disciplina de passar horas a estudar, sempre aceitando sacrificar-se. Aliás, creio que, para ela, não era sacrifício. Enquanto eu fiz questão de sair de casa quando fui para a faculdade e mudei de namorado e ia a festas e ao cinema e não parava, e, depois, cansada de tanta animação, resolvi 'assentar' aos vinte, a meio do curso, e começar a trabalhar, e todas essas coisas, ela, como todas as pessoas que conhecíamos, manteve-se em casa dos pais até se casar. E acabou o curso e a especialidade e tudo by the book. Casou com um rapaz simpatiquíssimo, igualmente bem comportado e disciplinado. 

Tal como eu, também teve dois filhos, um rapaz e uma rapariga, mas claro, nasceram quando os meus já eram crescidos. Também aqui, muito diferente de mim: batizou os filhos, fez festas de batizado. 

Profissionalmente manteve-se uma moura de trabalho. Tem cargos de responsabilidade num hospital, trabalha também no privado, e, uma vez mais, não sei como aguenta. Agora já não faz bancos mas, ainda assim, trabalha horas e horas a fio. E nunca a ouvi queixar-se de cansaço ou saturação. Gosta mesmo da profissão que tem. Quando fala de assuntos médicos, é sempre muito pedagógica. Ficamos a perceber bem as maleitas, os tratamentos, as probabilidades de as coisas irem para um lado ou para outro.

Continuamos a tratar-nos pelos nossos diminutivos e sempre que falamos, por muito tempo que tenha passado desde a última vez, é como se tivéssemos interrompido a conversa na véspera.

E hoje, orgulhosa e feliz, deu-me a notícia de que também já é avó. E eu fiquei muito feliz por ela, muito -- por ela e pelos meus tios, por todos. A minha prima, que é ainda a menina que trato pelo diminutivo e com quem acho que nunca me zanguei, já é avó! Dá para acreditar? 

[Do meu primo sonhador já falei algumas vezes mas da minha outra prima, outra que é mais na minha onda, acho que nunca falei. Um dia tenho que falar. Também gosto muito dela.]

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Desejo-vos um dia bom

Saúde. Boa sorte. Paz.

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