Volto à saúde mental. Uma expressão que muito me agrada é aquela de que o cérebro é a última fronteira. Nada sabemos do que o habita. Ou melhor, saber até sabemos. Mas não conhecemos inteiramente o que há para além do que se sabe. Isso não sabemos. E isso é muito.
- Somos o que a nossa mente é?
- E a mente é o que o cérebro processa? Ou é o que é, independentemente das faculdades dos neurónios e das sinapses?
- E se há ligações no cérebro que, por doença ou acidente, não estão a funcionar bem? Deixamos de ser quem, na verdade, somos?
- É a nossa maneira de ser, a nossa personalidade, que se altera ou, simplesmente, há algo que tem que ser tratado?
Por felicidade minha -- felicidade ou sorte, não sei -- até hoje ainda não sofri de depressão, não sofro de distúrbios obsessivos compulsivos e, se sinto ansiedade, parece-me legítima e controlável.
Mas conheço quem já tenha sofrido ou sofra destas perturbações. E sei como sofrem... Um sofrimento terrível, muitas vezes dúvidas sobre se alguma vez vão conseguir ter uma vida normal ou ser capazes de experimentar a felicidade. Ouço as pessoas falar: acordar já com ansiedade mesmo não sabendo exactamente porquê, ter medos, por vezes medos abstractos, indefinidos, medos incapacitantes.
Ou ter ataques de pânico, crises que se confundem com quase-morte.
De pessoas que têm assiduamente problemas deste tipo, medos, ansiedades, crises que parecem mesmo de saúde física -- e não de foro "mental" [como se o 'foro mental' não fosse também de ordem física...] -- pode dizer-se que essa é a sua maneira de ser, uma maneira de ser depressiva ou ansiosa, ou são pessoas que apenas estão doentes e a necessitar de tratamento?
Conheço uma pessoa que é obsessiva compulsiva e que, por exemplo, se está na dúvida sobre se desligou o computador, pede-nos a nós que vamos verificar senão ele já sabe que lá terá que voltar umas três vezes a fazer essa verificação. Já se conhece bem, já identificou o seu problema e já consegue lidar com ele, verbalizando as suas dificuldades. Mas não o consegue ultrapassar. Conta que, por exemplo, já se programa para sair mais cedo de casa do que seria necessário pois sabe que é mais que certo que volte várias vezes a casa para verificar se fechou a porta ou se desligou o gás ou a água. Conta que sabe que é absurdo mas que, se não o fizer, a meio do caminho dá meia volta e vai a casa fazer essa verificação.
Ainda existem muitos estigmas sobre as doenças mentais. Quem as sofre teme ser visto como maluco. Para os outros, alguém que se trata em psiquiatras ou psicólogos pode ainda ser visto como um fraco ou como um perturbado, inapto para funções mais exigentes. Ou confunde-se a doença com traços de personalidade. Muito desconhecimento, muito preconceito.
O que sei é que geralmente quem tem este tipo de problemas sofre muito mais do que sofresse de gastrite, de enxaquecas, de angina de peito ou de rinite alérgica. É que, nestes casos, a doença é reconhecida facilmente como doença e não há pudor ou receio em tratar. Já no caso de uma doença mental não apenas não é ainda frequentemente reconhecida como doença como, sendo-o, há algum receio de tratar-se, receio de adquirir habituação aos medicamentos, receio de ficar com as faculdades limitadas, receio de ficar conotado com uma personalidade fraca ou disfuncional.
Por isso, é importante partilhar testemunhos. Quem sofre não é o único a sofrer. Quem sofre deve poder saber que há tratamento, que há uma saída.
No outro dia já aqui partilhei a entrevista de João Vieira de Almeida sobre a depressão. Hoje partilho a entrevista ao Raminhos sobre o seu transtorno obsessivo compulsivo, a dúvida metódica transformada em paroxismo, em inferno. Uma vez mais, trata-se de uma entrevista da série Labirinto do Observador. Muito sincero, muito lúcido, muito explícito.
Raminhos: “‘Eh pá, não penses nisso’ é o pior que se pode dizer a alguém que lida com ansiedade"
Sentiu logo o estigma quando lhe falaram em medicação: "é porque sou maluco". António Raminhos fala sobre o seu transtorno obsessivo-compulsivo, que chegou a impedi-lo de sair de casa, no 'Labirinto — Conversas Sobre Saúde Mental'.
"crises que parecem mesmo de saúde física (e não de foro mental)"
ResponderEliminarÉ exactamente por aqui que é preciso começar": o "foro mental" é inteiramente físico. O cérebro é um orgão, tão orgão e tão físico como o fígado, o coração ou os rins. Apenas tremendamente complexo e cujo estudo - a pseudo-ciência freudiana, desastradamente, atrasou tudo demasiado tempo - se encontra ainda a gatinhar. Embora a recuperar terreno em boa velocidade.
Olá João,
ResponderEliminarObrigada. Totalmente de acordo. Já acrescentei umas palavras para tentar deixar isso claro. Quando estava a escrever quis que soasse familiar a quem tem essa ideia e até coloquei o físico em itálico e o "foro mental" entre aspas. Mas, de facto, não ficou claro que o foro mental faz parte do foro físico pois a cabeça é uma parte do corpo, o cérebro é um órgão e, quando têm problemas, devem tentar explicá-los e tratá-los.
Obrigada.
Um bom dia feriado!
É muito complicado discutir e/ou falar de saúde mental. Respeito e deixo isso para os/as entendidos/as
ResponderEliminar.
Feliz dia de todos os Santos.
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Exactamente.
ResponderEliminarE, quando escreve "há algum receio de tratar-se, receio de adquirir habituação aos medicamentos, receio de ficar com as faculdades limitadas, receio de ficar conotado com uma personalidade fraca ou disfuncional", embora esse receio seja comum a muitas pessoas com patologias bastante diferentes, no caso das doenças mentais, até tem algum fundamento justamente pelo atraso da psiquiatria/neurologia que ainda tacteia na escolha dos fármacos a usar, nas dosagens... É, sem dúvida, o melhor que temos e, evidentemente, tenderá a reduzir as margens de erro. Basta lembrar as dosagens cavalares de estrogénios das primeiras pílulas anticoncepcionais e as incomparavelmente menores - e eficazes - actuais.
Bom feriado.
Estarei enganado, mas sempre vi que neste domínio não há propriamente uma fronteira rígida entre quem é normal e quem não o é. Parece-me que há uma zona de interligação, um espaço onde ambos se misturam.
ResponderEliminarVi-o sempre que consultei um psiquiatra. E mais tarde quando convivi com um que tive como vizinho. E vi-o sempre que estive com alguém com deficiência .., ao ponto de pensar “por um triz que não sou como ele”.
- R y k @ r d o -
ResponderEliminarA doença mental tem que se encarar com naturalidade. É uma doença e, como tal, pode e deve ser tratada. É importante que surjam testemunhos para que quem pensa que o que tem é um problema só seu perceba que não é e que pode haver uma saída.
Uma boa quarta-feira!
João,
ResponderEliminarHá, de facto, muitas razões para as pessoas ainda recearem assumir que precisam de tratamento. Desde logo, o estigma social. Mas também a ideia que há dos choques eléctricos, das camisas de forças. E a imagem de alguns doentes que costumamos ver nas imediações do Júlio de Matos. Pensa-se nos casos graves, limite. Mas naturalmente pode surgir o receio de 'acabar' assim, de que os outros os vejam como malucos, 'doentes mentais'... Não é fácil. Mas sofrer em silêncio, solitariamente deve ser ainda pior. Não se deve sacrificar a vida.
Ainda bem que a medicina e a sociedade e a investigação começam a convergir na necessidade de prestar atenção a estas doenças.
Obrigada pelas suas palavras.
Um dia bom, João!
Olá Anónimo,
ResponderEliminarConcordo. Creio que a fronteira pode ser ténue, móvel. As circunstâncias ou a nossa própria natureza podem facilmente colocar-nos para lá da linha da 'estabilidade'.
É um assunto complexo.
Para já, sabemos lá o que é a normalidade...? Serão todas as pessoas que consideramos 'normais' na sua intimidade felizes, saudáveis, tranquilas consigo próprias? Não sei, não faço ideia. Sempre que ouço alguém falar dos seus problemas, espanto-me imaginando a quantidade de pessoas que conseguem disfarçar e que sofrem em silêncio.
Um abraço.
E uma boa quarta-feira!