De vez em quando há palavras que nascem e, se nascem no ninho das redes sociais, logo viralizam. Creio que destralhar seja uma delas. E foi isso que comecei ao fim da tarde e que continuei, embaladíssima, a seguir ao jantar. Creio que vai talvez nem a meio. Destralhei que me fartei. Tudo o que vagamente me pareceu lixo foi sem olhar, à cara podre. Lixo.
Aquilo bem pergunta: "tem a certeza que quer eliminar definitivamente?"
Yes! -- respondo eu sem pestanejar.
Acontece que, desta vez, o lixo não é roupa ou papéis velhos: desta vez o lixo é digital.
Ao longo dos locais por onde passei para aí nos últimos dez anos fui arrastando as caixas de correio. Hoje resolvi que era tempo de limpeza. Já apaguei cerca de catorze mil mails profissionais. Sinto-me feliz. Gosto de fazer limpezas profundas.
Claro que de vez em quando fiquei intrigada. Outras nostálgica. Por exemplo, encontrei muitos mails que não têm préstimo profissional mas que não fui capaz de apagar. A mulher de um colega amigo era uma inesgotável fonte de piadas, anedotas, imagens divertidas, vídeos malucos. Mandava ao marido por mail e que ele encaminhava para o grupinho de amigos mais chegados. Geralmente tudo na vertente picante. Era médica e divertidíssima. Já aqui falei algumas vezes dela. Era médica e escondeu de todos o estado gravíssimo em que estava. Quando quase não se conseguiu mexer e a família percebeu que era mais que cansaço, já teve que ir ao colo para o hospital, morrendo dois ou três dias depois. Dias antes tinha-me ele ligado dizendo que estavam bons, que ela estava ali a mandar beijinhos. Não apaguei esses mails. Não os abri pois veria o mail dela para o marido e veria os comentários -- do mais malicioso e brejeiro -- que ela fazia... e ficaria com pena por uma pessoa assim ter morrido tão inexplicavelmente cedo.
Outros mails que não apaguei mas que vou ganhar coragem para fazê-lo são de um colega que vivia para o trabalho, andava sempre enervado, os outros nunca faziam as coisas no grau de perfeição que ele exigia. Por vezes, vendo-o possesso, temia que ele rebentasse de fúria. Ficava vermelho, parecia que inchava, a voz alterava-se. Penso que a tensão arterial deveria bater no tecto. Começava a trabalhar às sete e tal da manhã e trabalhava até às horas que, na opinião dele, fossem precisas, oito, nove, dez da noite. Andava sempre com uma pasta repleta de dossiers e parecia carregar ali o seu mundo. Às tantas mudei de empresa e de instalações. Ele não. Um dia ia eu para o norte e parei numa estação de serviço. Deviam ser umas sete da manhã ou antes. À minha frente estava um homem que não reconheci. Quando ele pagou, virou-se para sair e deu comigo. Exclamou o meu nome, cumprimentou-me. A voz era a dele. A pasta pesada que levava na mão também era a dele. Mas era menos de metade dele e estava cinzento e todo ele estava outro. Fiquei em estado de choque mas tentei não demonstrá-lo. Parecia um cadáver. Quando comentei com um outro, fui informada que ele estava com um cancro, terminal. Continuava a trabalhar como sempre o tinha feito, nos limites da exigência, tentando a perfeição. Morreu pouco depois. E, segundo me contaram, os seus serviços continuaram a funcionar, a funcionar bem e sem se dar pela sua falta. Talvez seja um pouco triste constatar que somos todos descartáveis, mesmo os muito bons, mesmo os muito dedicados e perfeccionistas.
Vi também uma lista imensa de mails de um nome que não me dizia nada. Ao longo de anos, mails e mais mails e mais mails. Abri alguns. Lembrei-me. Era uma rapariga, muito simpática e certinha. O último mail era de despedida. Dizia que ia 'abraçar um novo desafio', agradecia a colaboração e o apoio. Tinha-me esquecido completamente dela.
De uma outra, páginas e páginas de mails. Uma colega com quem não podia, daquelas que está sempre a querer mostrar serviço, sempre competitiva, sempre a insinuar-se junto de quem ela achava que poderia levá-la mais longe. Uma fulana insuportável. Uma vez estava a ter uma reunião com ela, já fora de horas. O telefone não lhe parava de tocar. Ela desligava-o, furiosa. Eu disse: 'Não quer atender?'. Acabou por atender: 'O que é que foi?! Não viste que não te queria atender!?' Do lado de lá uma voz de miúdo. E ela 'Sei lá a que horas vou! Que pergunta é essa? Vou quando puder ir.'. O rapazinho dizia qualquer coisa e ela, enraivecida: 'Sei lá o que é o jantar! Não estou em casa! Resolvam!'. Fiquei chocada. Perguntei se era o mais novo. Disse que sim, agastada. O miúdo deveria ter uns catorze. O mais velho uns dezasseis. Eu que sempre larguei tudo para atender os meus filhos e que jamais falaria assim com eles ou os deixaria sem jantar fiquei estarrecida. Quando mudei de empresa, uma das coisas boas foi deixar de ter que aturá-la. Há pouco tempo soube que ela, entretanto, também mudou de empresa. Portanto, tudo o que para ela parecia caso de vida ou de morte, deixando-me várias vezes em ponto de rebuçado, está agora nas mãos de outro responsável que, segundo ouvi dizer, é uma pessoa tranquila, o oposto dela. Parece que festejaram quando se foi embora e agora tentam apagar-lhe o rasto. Penso que é de pessoas assim que se diz que são tóxicas. Não apaguei a troca de mails com ela mas tenho para mim que são capazes de ir à vida numa segunda monda.
Também tenho páginas de mails trocados com um amigo que saiu para ser ministro e com quem continuei a trocar mails mesmo quando ele já tinha voltado à sua actividade normal, não na mesma mas noutra empresa. Alguns mails bem divertidos.
Parte da história da minha vida passa por estes mails. E o que concluo é o de sempre: tudo é transitório, tudo é efémero. E quem se acha muito importante e julga que tudo pode está muito enganado, muito enganado...
Amanhã vou continuar a limpeza. Não vejo a hora. Love, love, love. É como varrer: adoro.
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Um dia bom
Saúde. Bons ares. Paz.
Por vezes também faço isso. Limpeza digital. Adorei o gif. Super divertido
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Cumprimentos poéticos.
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