sexta-feira, agosto 12, 2022

Só há uma pergunta a fazer quando se pensa em casar

 



A pergunta refere-se a casar mas quem diz casar diz juntar os trapinhos ou namorar. Para o efeito, vai tudo dar ao mesmo.

E a pergunta quem vai dizer qual é não sou eu, é o Rubem Alves aqui abaixo, que, através dele, a coisa soará mais inquestionável do que se for eu a botar prosa.

O que posso dizer, e digo com os ensinamentos que um casamento de mil anos já me proporcionou, é que, a meu ver, as questões críticas são as seguintes: 

    • entendemo-nos? 
    • estamos bem um para o outro? 
    • vivemos no mesmo mundo? 
    • orgulhamo-nos um do outro? 
    • estaremos sempre cá um para o outro? 

É que é tudo muito bonito mas se um fala de alhos e outro de bugalhos, se um gosta de natureza e outro de estar fechado em casa, se um vive na terra e outro (pensa que) vive na lua, se um até treme com os disparates que o outro a qualquer momento pode dizer ou se um está sempre disponível para o que for preciso e o outro nunca está nem aí, então... então, adeus minhas encomendas.

Pode a gente achar que o outro até é lindinho ou que, volta e meia, faz umas flores ou, quem sabe, pode iludir-se e sonhar que o outro pode vir a modificar-se e melhorar... mas se, lá no fundo, aquilo que acima referi é uma sombra que a gente pressente que existe (embora querendo fazer de conta que não tem importância), então, é para esquecer. Pode a coisa aguentar-se algum tempo, podem agarrar-se à probabilidade de a coisa vir a melhorar... mas é tempo perdido, oh lá se é.

Claro que há mais factores relevantes para a coisa dar certo. Por exemplo, há o lado físico. Fundamental. Do mais fundamental que há. A gente pode armar-se em platónica, em lírica, em anjinha, mas, vamos ser claros, se a gente não sente uma atração, uma afinidade de pele, um prazer em estar junto, em olhar de perto, em olhar de longe, em olhar para dentro, em sentir o cheiro, o toque, o calor, se a gente não gosta do tom de voz, se a gente acha que aquelas mãozinhas não sabem agarrar, que aquela boca não sabe causar um arrepiozinho bom.. então é a mesma coisa: para esquecer. Não vai dar. Mais vale saltar fora.

E outra: se são almas gémeas, iguaizinhas, se o que um pensa é tal e qual o que o outro pensa, se gostam exactamente ds mesmas coisas, se estão sempre de acordo... então, bye bye maria ivone. Não dá. Uma seca. Ao fim de algum tempo, se ainda não tiverem morrido de tédio, já estarão a pular a cerca cada um para seu lado. 

Hoje, ao fim da tarde, antes de resolvermos ir passear para a praia, espreitei a netflix. Apareceu-me a casamenteira indiana. Deixei-me ficar durante um bocado. Há mundos paralelos. Uma pessoa nem sonha que, aos dias de hoje, ainda existem casamenteiras. Os que querem arranjar noivo enumeram os requisitos para que a casamenteira saiba o que procurar. As mulheres que salteadamente vi, querem homens da mesma idade ou um pouco mais velhos, mais altos, bem sucedidos, pessoas de família. Coisas assim. A casamenteira acha que, se houver um mínimo de afinidades, com o convívio e a vontade de dar certo, a coisa acabará mesmo por vingar. Não sei. Se calhar, quando não dá certo, toleram-se, resignam-se. Mas isso não é a minha cena. Se é para ser, tem que ser mesmo, de verdade, amor a sério.

Amor que é amor e que perdura como amor tem que ser coisa de boa cepa, sentimento forte, elástico, flexível, resiliente, auto-regenerativo.

Mas, enfim, isto sou eu a falar e, na volta, sou exigente para lá da conta. No entanto, a sensação com que estou é que, apesar do que já disse, devo ter-me esquecido de mais um montão de coisas importantes. 

Ah, sim, agora lembrei-me de uma que é fundamental: tem que ter sentido de humor. Humor é oxigénio. Eu morreria à míngua se tivesse que viver com alguém que não soubesse fazer-me rir.

E tem que ser generoso. Gente má, mesquinha, invejosa, complicada, implicante, tem que estar longe. Gente assim infecta. Não pode. Distância. Xô!

Ah, sim, outra que é fundamental. Podem crer: fundamental. A gente tem que olhar e ter a certeza que o outro vai ter sempre a capacidade de nos tirar o tapete, de nos tirar o chão, de nos tirar a respiração. E de nos tirar do sério

E há mais. De certeza que há.

Mas agora passo a palavra a um mestre que acha que nada disso, que tudo se resume a uma questão:

Rubem Alves • Só existe uma pergunta a ser feita quando se pretende casar


Transcrevo o texto que acompanha o vídeo no Youtube:
Depois de muito meditar sobre o assunto, concluí que os casamentos são de dois tipos: tênis e frescobol. Casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e costumam ter vida longa. Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente: “Ao pensar sobre a possibilidade do casamento, cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: ‘Você seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a velhice?’. Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar”.

Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme “O império dos sentidos”. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar “mil e uma noites”. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre depois de morrer.

Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: “Eu te amo, eu te amo…”. Barthes advertia: “Passada a primeira confissão, ‘eu te amo’ não quer dizer mais nada”. É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: “Erótica é a alma”.

O tênis é um jogo feroz. Seu objetivo é derrotar o adversário. E a derrota se revela no erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do adversário, e é justamente para aí que ele vai dirigir a sua cortada – palavra muito sugestiva, que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro.

O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra – pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol, é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir. E o que errou pede desculpas, e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo.

A bola são as nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho pra lá, sonho pra cá… Mas há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam à espera do momento certo para a cortada. Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão. O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde. Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração. O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Bola vai, bola vem, cresce o amor… Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim.
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As fotografias são de Man Ray e Melody Gardot interpreta If you love me

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Desejo-vos uma boa sexta-feira
Saúde. Boas descobertas. Bons amores. Paz.

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