sexta-feira, junho 03, 2022

O que acontece quando as casas ficam órfãs?

 

Hoje, antes da reunião propriamente dita começar, ele perguntou-me se continuo feliz e contente na casa nova. Disse-lhe que sim, que poder abrir a porta da cozinha e estar na rua e poder atender um telefonema e poder pôr-me a andar às voltas no jardim enquanto falo é daquelas coisas boas que aconteceram na minha vida.

Ele referiu que o movimento dele foi o contrário: mudou-se de uma bela moradia numa das melhores localizações (se calhar do país) para ir morar num apartamento no centro da cidade. Perguntei porquê. Lembro-me de quando andava feliz da vida a mudar-se para a grande casa nova, com um belo jardim. Disse-me que o fez, com muita pena, por questões de racionalidade. Todos na família trabalham no centro e, depois,  tinham pensado que, quando os filhos saírem de casa, iam ficar os dois sozinhos numa casa tão grande.

Disse-lhe que é um erro dar ouvidos aos filhos pois, não tarda, vão mesmo sair de casa e portanto deixam de protestar por terem que apanhar trânsito para o centro e, depois, um dia destes estão a encher a casa de filhos e vai ser preciso mais espaço, e depois querem lá deixar os filhos e vão precisar de quartos. 

Vi que ele ficou a pensar e disse-lhe: 'Mas deixe, são ciclos. A gente vai mudando, as circunstâncias vão mudando'. Ele disse: 'Se for preciso, depois volto a mudar'. 

Pensei: 'Espero nunca mais me mudar'. Não me esqueço do trabalho esgotante, interminável da mudança 

Mas, como qualquer opção, não há soluções perfeitas. No meio de uma cidade, desce-se à rua e está-se ao pé de tudo, pode tratar-se de tudo sem ter que andar de carro. Aqui não posso tratar de nada se não me meter no carro. Não sei se vamos conduzir até aos cem. Tenho um tio quase com noventa que conduziu até ao ano passado. Nem sei se, de vez em quando, ainda vai dar uma volta.

Um outro, quando o ano passado lhe contei, ficou muito admirado e depois disse uma coisa curiosa, muito dele: 'eu, nestas coisas, penso sempre numa coisa: se um morre, fica o outro sozinho numa casa grande...?'. Desatei-me a rir, só ele mesmo para um pensamento tão negativo e assustador. Respondi-lhe: 'Nunca me ocorreu isso. Mas mesmo que seja para ser bom durante um ou dois anos, já terá valido a pena'.

Ao meu marido o que o preocupa nisto é outra coisa. Volta e meia, em especial quando me vê com decorações ou arrumações, diz: 'um dia que os putos tenham que dar a volta a isto, há-de ser bonito...

Às vezes diz: 'sempre quero ver quando os putos tiverem que dar destino a tanta tralha'. Apetece-me sempre responder: 'querias... porque, na verdade, quando isso acontecer já não estarás cá para ver'. Mas não digo nada porque penso que, de facto, deve ser um pesadelo para eles.

A única vez que me calhou participar num número destes foi numa casa de uma tia do meu marido, casa em que ela vivia com uma irmã e com o cunhado e onde antes tinham vivido os pais. Era um apartamento muito grande, antigo, no centro da cidade. Nenhuma das irmãs tinha tido filhos pelo que os herdeiros foram três sobrinhos. Já falei desta experiência várias vezes. Foi das experiências mais traumatizantes por que passei. Os três sobrinhos e respectivas mulheres tinham interesses diferentes e moviam-se a velocidades distintas. Um queria ver cada papel, lia em voz alta, ia mostrar aos outros. Ao fim de um dia, tinha visto uma gaveta. O outro divertia-se com tudo, chegava à conclusão que as santas tias afinal devem ter tido o seu lado boémio, ria, contava histórias. A mulher deste, que andava de candeias às avessas com ele, desconversava, lançava farpas, falava nas namoradas dele. A mulher do primeiro queria era deitar tudo para o lixo. Abria sacos pretos daqueles de tipo contentor e, a eito, despejava gavetas inteiras lá para dentro ou, então, fazia montes a eito, para dividirmos entre nós, separando jogos de lençóis, serviços de chá. Eu queria que víssemos o que interessava a cada um e, se todos concordassem e as coisas fossem de valor equivalente, repartíamos as coisas com alguma lógica mas ninguém estava nem aí. O meu marido, como sempre, não tinha paciência para nada e começou por dizer que não queria nada, que resolvessem entre eles. Os outros, claro está, não foram na conversa: as tias tinham dito que era para ser dividido pelos sobrinhos e todos tinham que ter o trabalho de esvaziar o apartamento, ele que não pensasse que podia escapar-se. Então aquilo durou fins de semana infinitos, uma saturação insuportável. E uma intromissão na privacidade de todos os que ali tinham morado. Roupa interior, gavetas com objectos pessoais, cartas, carteiras ainda com fotografias e bilhetinhos. Tudo. E ou deitávamos fora a eito, desprezando o que eles tinham adquirido e guardado com tanto carinho, ou devassávamos os registos e os testemunho da sua vida, nos mais ínfimos detalhes.

Para além de nos termos aborrecido uns com os outros -- porque aquilo era uma coisa mesmo enervante e never-ending -- e para além do trabalho, depois, em arranjar sítio para guardar o que aproveitámos (com o meu marido a querer que eu deitasse tudo fora, que não queria ficar com coisas usadas pelos tios ou pelos avós), ficou a sensação de que não vou ser capaz de voltar a viver experiência equivalente.

E, no entanto, se calhar um dia vai ter que acontecer. 

Na altura da casa dos tios do meu marido, calhou termos obras de ampliação in heaven e, portanto, algumas coisas acabaram por der jeito e outras, que não faziam falta nenhuma, tiveram sítio onde ser arrumadas e ainda estão guardadas como de lá vieram, sem qualquer utilidade. Mas, se isso não tem acontecido, ou seja, se não tivesse onde guardar o que trouxémos, se calhar teríamos de nos desfazer de tudo.

Quando os meus avós morreram, quem teve o trabalho de esvaziar as casas foram os meus pais e os meus tios. Desfizeram-se de quase tudo. Os meus primos, desapegados, não quiseram nada. Os meus pais e os meus tis não tinham onde guardar ou não quiseram. Eu aproveitei algumas coisas e hoje guardo-as com muito carinho. Mas, na verdade, são memórias e memórias que vou acumulando. O meu marido não lhe chama memórias, chama-lhes tralhas.

E, no que se refere a esta casa, um dia em que deixemos de habitar esta vida, penso sempre que, com sorte, entre os herdeiros, algum vem morar para cá e se muda, deixando ficar tudo mais ou menos como está, para não ter que ter trabalho a ver-se livre de nada.

Quando vejo casas grandes, cheias que nem um ovo, cheias, cheias, penso sempre nisso: como é que alguém, outrem, vai conseguir dar a volta àquilo tudo? 

Por exemplo, veja-se a casa aqui abaixo. Algum dia  Hamish Bowles vai deixar de habitar o seu belo e bem recheado apartamento e alguém vai ter que revistar armários, gavetas, prateleiras, caixas, vai ter que dar destino a todas aquelas peças de que fala com tanta estima. Mas não se percebe como... Tanta coisa...

Inside a Magazine Editor's New York Apartment Filled With Wonderful Objects | Vogue

The home of the legendary Vogue editor and newly-appointed editor in chief of The World of Interiors, Hamish Bowles, honors his enduring love for travel. See Hamish's wonderful, whimsical New York City apartment in this edition of "Objects of Affection.


-------------------------------------------------------------------

Fotografias feitas in heaven na companhia de Julie London - "Time After Time" 

--------------------------------------------------------------------------------

Desejo-vos uma boa sexta-feira 

2 comentários:

  1. Pergunto-me, por vezes, se são as casas que ficam órfãs, ou nós que ficamos órfãos das casas...
    Sobretudo, tratando-se das velhas casas grandes da família. Não, pelas paredes pintadas, pelos tetos decorados, pelo chão de madeira encerada; mas, pela memória, pelas recordações que nos vêm ao visitá-las naquela derradeira vez em que, vazias, as contemplamos.
    São cantinhos da nossa memória repletos de passado, tal como repletos estavam os baús das arrecadações que tanto trabalho nos deram esvaziar, sempre com aquele incómodo aperto no coração.
    A opção por, podendo, sair da cidade parece a mais inteligente nos dias de hoje, mas pesa, e de que maneira, o fantasma da solidão da viuvez. Podemos olhar para o lado, como se nada fosse, mas ele existe e, a menos que mantenhamos a mobilidade ou tenhamos a rara ventura de dar com vizinhos com quem tenhamos afinidades, faremos bem em planear como iremos passar os últimos dias a sós. Parece-me uma questão da mais elementar sabedoria e razoabilidade, tal como alguma contenção no acumular daquela 'tralha' que achamos uma pena não adquirir e que muitas vezes já vamos tendo dificuldade em utilizar... ou arrumar, quando já nos apercebemos que não terá sido assim tão boa ideia comprar.
    Os melhores votos de felicidades na casa nova, e que os fantasmas não belisquem o que dela poderá desfrutar.
    Bom fim de semana!
    António Ladrilhador

    ResponderEliminar
  2. Olá António,

    Sábias palavras...

    Mas a gente, volta e meia, esquece-se da nossa própria finitude. Parece que julgamos que nós e aqueles que queremos junto a nós seremos eternos. E, ao tomarmos decisões, tomamo-las pelo prazer do momento. Mas eu, na verdade, mesmo se me ocorre que pode não durar para sempre, penso que mesmo que seja por um dia já terá valido a pena.

    Mas a questão da trabalheira que sobra para quem depois tem que resolver o destino a dar às nossas coisas é o que me preocupa...

    Gostei de ler o que escreveu.

    Um bom fim de semana também para si!

    ResponderEliminar