domingo, janeiro 30, 2022

Apontamentos no dia em que o pequeno urso peludo devorou parte da história do Pina

[E, a despropósito, uma casa magnífica com várias hortas dentro]

 


A seguir ao almoço, coloquei uma pequena espreguiçadeira ao sol, no terraço. O meu marido prefere sentar-se numa cadeira normal. Estivemos ali, tranquilamente. Não estava frio, o sol reflectido nos muros estava quase dourado.

Os rapazes cuja ocupação nunca consegui perceber foram-se embora da casa ao lado. Depois da limpeza no interior, há agora pinturas e arranjos cá fora. Qualquer dia terei vizinhos novos também deste lado. 

Lá mais à frente há outra casa à venda. Hoje, quando fomos fazer a nossa caminhada, vimos um jovem casal com umas crianças pequenas a olhar para a casa. Eu ia à frente, com a pequena fera pela trela. O cabeludo desperta sempre algum olhar divertido e cumprimentaram-me como se eu fosse vizinha.

A tarde estava a pôr-se e, por isso, as casas já estavam com as luzes acesas por dentro. 

Há uma casa de que gosto muito. É muito elegante e a cor clara em conjugação com a pedra branca torna-a muito harmoniosa. Poderia ser um templo. No jardim tem umas flores que não consigo descobrir à venda mas que são etéreas, lindíssimas. Dão à casa um aspecto ainda mais elegante e despojado. Já vi algumas vezes a proprietária. É alta, magra e tem o cabelo muito curto. Vejo-a quando está no jardim a aparar as flores e os arbustos. Tem um ar sereno. Cumprimenta-nos em português mas parece-me perceber-lhe um certo sotaque francês. Ao proprietário apenas vejo dentro de casa, sentado ao computador, numa mesa que está junto à grande porta-janela que dá para o jardim.

Hoje as luzes estavam acesas e as portadas externas abertas. Vi a decoração da casa. Minimalista, confortável, também de uma sofisticada elegância, uns grandes quadros e uns candeeiros muito bonitos. Num canto tinham a televisão ligada, grande. E o surpreendente é que estava a passar um desfile de moda, lento. 

Lembrei-me de um colega de gostos requintados e comportamento algo excêntrico que dizia que, à noite, para descansar a cabeça antes de ir para a cama, se punha na sala a ver desfiles de moda, a beber um copo, a fumar um charuto. Quando me disse isso, achei que só mesmo ele para uma coisa tão maluca. Quem é que antes de se deitar bebe whiskey, fuma um charuto e... vê desfiles de moda? Explicou que muitas vezes os desfiles aconteciam ao som de boa música, que gostava de ver mulheres bonitas a deslizar, quase a levitar, e que o sabor da bebida e do perfume do tabaco, a névoa do fumo, tudo aquilo era o quase sonho de que precisava para dormir com os anjos.


No outro dia, numa das nossas caminhadas ao fim da tarde, assisti a uma cena memorável. Há uma casa que tem um cão simpatiquíssimo. Quando nos vê a passar com o nosso, vai encostar-se à vedação a dar ao rabo e a querer interagir connosco. Paramos sempre ali para eles poderem confraternizar. Aliás, mal nos aproximamos, já o nosso começa a puxar, numa alegria. Eu digo: 'Vamos ver o amigo, vamos...?' e ele dá ao rabinho, todo contente. Naquele dia, contudo, ouvimos uma música inesperada. Música dita clássica. Talvez Schubert. E, então, vimos o dono da casa a cortar lenha. Um verdadeiro lenhador. Havia um tronco largo de madeira no chão e, em cima, ele punha as peças de lenha que, com um machado e com grande precisão, partia. Ao som de música clássica. Com o cão, tranquilo, ao pé. Há momentos imprevistos que, só por si, fazem o dia valer a pena. Pelo menos para mim... Estava espantada e disse ao meu marido: 'Que coisa mais incrível, não achas...? Acho o máximo, a rachar lenha ao som desta música...' O meu marido não mostrou qualquer interesse, continuou a andar e disse: 'Não acho nada de mais'. Sempre quero ver se, um dia destes, é ele que me surpreende com uma destas...


Mas desviei-me do assunto. Dizia eu que me sentei ao sol a ler. O mesmo livro dos últimos dias: a biografia do Manuel António Pina: 'Para quê tudo isto?'. O pequeno urso estava sentado ao meu lado. De manhã, tinha estado a penteá-lo. Dantes deixava e até gostava. Agora é uma luta, quer pegar na escova, quer tirá-la das minhas mãos para fugir com ela. Com esforço, lá consegui. Ficou com o pelo solto, macio. Estava a ler e a fazer-lhes festas, o pelo farto, fofo e macio onde sabe bem passar e enfiar a mão.

Então, tocaram à campainha. Entrámos para ver quem era pois estávamos nas traseiras da casa. Eram os homens que vieram arranjar o motor de um estore e o comando de um outro. O meu marido foi abrir a porta e eu fui pôr a fera na rua pois agora, sempre que alguém toca à campainha, vira um animal. Ladra ferozmente, vai a correr para a porta e, se o deixamos, sai e ladra alto e bom som a quem estiver do lado de fora. Depois de os homens estarem dentro de casa e a fera na rua, voltei a entrar. O meu marido estava a explicar o que estava a precisar de arranjo. Aproveitei para ir vestir um casaco. Depois ouvi que estavam a partir qualquer coisa na casa ao lado e fui ao andar de cima para, da janela, cuscar. Não vi nada. 

Ao fim de um bocado, como percebi que o arranjo estava demorado, resolvi retomar a leitura. Fui ver se o livro estava na espreguiçadeira. Não estava. Também não estava em cima da mesa. Pensei que o teria trazido para dentro quando ouvi a campainha. Mas não o encontrei. Nesta casa isto acontece-me com tudo a toda a hora. Nunca sei onde deixei o telemóvel, as chaves, o casaco. 

Passado um bocado fui ver onde andava o urso que estava tão calado.


Juro. Ia-me dando uma coisa. Estava na relva com folhas e papéis rasgados. De repente nem percebi o que era. Aproximei-me. Só não me deu uma coisa porque afinal o meu coração não deve ser tão frágil como o tentaram pintar. Pelo menos deve ser à prova de sobressaltos destes. A contracapa arrancada e despedaçada, várias folhas arrancadas e rasgadas. Sei que a violência não resolve mas foi mais forte que eu: dei-lhe mesmo um estalo. Deve ter sido ao de leve pois não se torceu nem se amolgou. Ainda ensaiou rosnar por eu estar a querer-lhe tirar a brincadeira mas eu estava tão furiosa, tão, tão furiosa, zanguei-me tanto que se levantou e se foi embora como se não tivesse nada a ver com o lindo serviço que ali estava.

Ainda vou tentar colar algumas folhas pois acho que apanhei quase todos os bocados e bocadinhos que esvoaçavam na relva. Do que me parece, para além da contracapa e das páginas das referências, deve ter danificado uma dúzia de páginas a meio.

Só visto. 

O meu marido, quando lhe mostrei a desgraça, disse: 'Não devias ter deixado o livro ao alcance dele'. Mas como? Vou andar agora a ter que esconder todos os livros dele? Impossível. Fico passada só de pensar nisto.

Mas, enfim, já é domingo, dia de eleições e vou mas é para a caminha para ver se me levanto cedo pois tenho muito que fazer na parte da manhã, nomeadamente votar. 

--------------------------------------------------------------------

Mas, antes de ir, gostava muito que vissem esta casa. Acho-a extraordinária. Tudo na casa: as proporções, a luz, a sombra, a distribuição dos espaços, o arejamento, a cortina verde... e a agricultura que ali se pratica. Quando se junta um arquitecto fantástico com uns donos especiais saem verdadeiras obras de arte.

The Planter Box House | Malaysia’s Extraordinary Homes | Award Winning Architecture | Transformation


__________________________________________________________

Fotografias (feitas no outro dia ao pôr do sol lá em casa, in heaven) na companhia de Ludovico Einaudi com Temple White 

__________________________________________________________

Desejo-vos um belo dia de domingo
Boa sorte. Boas notícias. Alegria. 

Sem comentários:

Enviar um comentário