A minha mãe está sem saber o que oferecer ao médico. É médico e, de certa forma, amigo. Tem uma dívida de gratidão que não há como pagar. Há uma meia dúzia de anos, só por ela andar cansada, prescreveu-lhe uma sucessão de exames que o levaram, num ápice, a descobrir que era o cancro do cólon que andava a fazer perder sangue e, daí, o cansaço. Teve também a sorte de arranjar um excelente cirurgião que a operou rapidamente. Mas o seu médico assistente é o médico para todas as ocasiões, para todas as dúvidas. Deve ser da mesma idade, mais coisa, menos coisa. E é um espírito livre.
Conheci o irmão dele, outro que tal, uma pessoa de quem toda a gente gostava. Excessivo, destemido, desbragado. Penso que já o contei. Um dia, um amigo comum, apareceu ao pé de mim e disse-me: 'Morreu o Manuel'. O nome não é Manuel mas não quero dizer o nome verdadeiro. Esse amigo estava abalado, tenho a certeza que tinha o coração descompassado. Não percebi a quem se referia. Passei em revista os Manuéis que poderiam morrer e não me ocorreu nenhum. 'Manuel? Qual Manuel?? e ele: 'O Manuel! Morreu!'. Fiquei na mesma. E ele, à beira de colapsar: 'O nosso Manuel!'. De repente, ocorreu-me que poderia ser mesmo o 'nosso' Manuel. Fiquei parada. Ele explicou: 'Caiu. De repente. Morreu'.
Morreu. Era inteligente, brilhante. Vivia a vida no limite. Era um gozão para lá dos limites, um amante que, rezavam as lendas (e contava a namorada), era do mais loucamente apaixonado que se poderia imaginar, era um dos melhores garfos, um connaisseur dos melhores vinhos. Rematava os bons momentos com um demorado cubano. Era uma das suas imagens de marca. Onde quer que estivesse, se lhe dava para isso, na maior irreverência, puxava longas e perfumadas baforadas, recostava-se, ria.
Conheci a sua filha. Com ela convivi de perto durante algum tempo e com ela me diverti à grande. Detestava a namorada do pai que era mais nova que ela. Mas detestava também excessivamente, destemperada como o pai.
O tio, médico da minha mãe, é outro irreverente. Canta, escreve, diverte-se.
Também não sei que presente apreciará ele. Se fosse eu, arriscaria um presente igualmente irreverente. Mas a minha mãe é mais convencional, mais tímida, tem sempre receio do que os outros pensam.
Também eu tenho algumas dúvidas em relação a alguns presentes. Antes da pandemia, naquela minha outra vida de frequentadora das catedrais de consumo, eu conseguia, nem que fosse a correr à hora de almoço, ver o que por ali havia que pudesse ser apropriado para uma e outra pessoa. Agora estou a leste.
Este domingo, de manhã, fomos buscar a minha mãe para irmos passear na zona ribeirinha, agora tão arranjada, tão bonita. Estava uma boa temperatura, sol. O urso peludo adora a minha mãe e ela gostou de ver como o pequeno terrorista, nestas circunstâncias, se porta tão bem. Tirei-lhes fotografias. Toda jovem e sorridente, num cenário luminoso.
Depois de almoço, fomos para outra praia, desta vez de mar, onde o meu filho e a sua trupe se nos juntaram. Foi a primeira vez que o little teddy bear esteve na praia, tal como foi o primeiro dia que esteve face a face com outros cães, em contacto directo, farejando-se, avaliando-se.
Os meninos, cada vez mais mais crescidos, disputam o passeio à trela, os meninos correm, os meninos brincam, os meninos brigam uns com os outros para disputarem a condução da trela. E o maluco, portando-se como um cão ajuizado, porta-se à altura, (relativamente) bem comportado. Mesmo sem trela portou-se bem.
Provou como é bom andar na água, escavou, correu, brincou. E sentiu o afecto bom de estar em família.
Mas, mal chegou a casa, deitou-se no chão do corredor e ali ficou, como se estivesse inanimado. Vinha exausto, pois claro. Pensámos: cansado como está vai dormir até amanhã.
Sim, sim...
Passado um bocado acordou, comeu e, na maior euforia, tentou virar a casa do avesso. O bom comportamento esvaiu-se num instante. Há sempre um momento do dia, geralmente ao fim do dia, em que um pico de energia o faz dar-nos conta do juízo.
E nesta vida acelerada em que parece que nada acontece mas em que todos os dias estou ocupada de manhã à noite dou-me conta que, sem perceber como, o ano está quase a chegar ao fim. O Natal é para a semana e o Ano Novo logo a seguir. Não sei se os cientistas estão atentos a este fenómeno: o tempo está a correr mais depressa do que devia.
Estive a ouvir as previsões do Economist para 2022. Ou tudo muito previsível ou tudo muito distante. Senti uma grande indiferença em relação ao que ouvi. Gostava de ter ouvido outras coisas: descobertas científicas revolucionárias, inesperadas tomadas de consciência colectiva, altamente promissoras reviravoltas políticas, o mundo das artes a assumir um insólito e saudável protagonismo... coisas assim. Mas não, nada disso.
ResponderEliminarBoa noite. Agradecem-se as excelentes notícias sobre o urso peludo – belos textos, magníficas fotos, comprovativas, para nosso imenso alívio, de que o novo membro do clã nem fora “rifado” nem se achava mal de saúde. Está a evoluir como todos os da sua raça, integrando-se – e entranhando-se – cada vez mais na sua família humana, que, em sendo adulto, ele amará e defenderá com todo o sopro de vida que lhe reste. Quanto à cãzinha, vivia segundo diferentes genes ancestrais – seria decerto beatificada num eventual mundo paralelo regido por canídeos. O urso peludo, não, jamais o beatificariam: esse pequeno e estimável traquina é de outra extracção genética, crescerá como guerreiro, defensor e companheiro de todas as horas. Mas a sua capacidade de amar, posso garantir-lhe – e como ele abundantemente demonstrará -, não é nem um bocadinho inferior à da cãzinha…
Olá José Duarte,
ResponderEliminarNão sabe como gostei de ler o que escreveu. Vê-se que sabe e que gosta de cães. Será que também é um Dog Whisperer?
Já agora: saberá dizer-me o que devemos saber quando o vemos com alguma coisa indevida na boca e, se lha vamos tirar, nos rosna e mostra os dentes, preparando-se para nos morder se insistimos?
Pode ser uma cebola (agora vai ao carrinho das batatas e das cebolas, agarra uma e desata a correr), pode ser uma flor (pega nelas com os dentes, abana, abana, até arrancá-las dos vasos), pode ser um plástico, pode ser um cogumelo, pode ser o que calhar...
O que se faz? Desistimos e deixamo-lo com aquilo na boca e seja o que deus quiser? Enfrentamo-lo e arriscamo-nos a ser mordidos?
Eu sei que deveríamos desviar-lhe a atenção. Só que não apenas às vezes não temos à mão o que o seduza como ele já sabe que vamos usar manobras de diversão e já não se deixa enganar...
Tirando esse sentimento de posse em relação a 'achados' seus, é uma criatura amorosa, brincalhona... É certo que tem um excesso de energia face à ausência de rebanhos para pastorear. Mas isso somos nós que temos que arranjar maneira de o pôr a correr até se cansar.
Agora aquela agressividade é que nos deixa sem saber o que fazer...
Pode ajudar?
Obrigada.
Desejo-lhe um dia feliz.
ResponderEliminarOlá, UJM,
Não, não sou um émulo do Cesar Millan nem ando lá perto. Apenas tenho coexistido ao longo de toda a vida com estas admiráveis criaturas, capazes de dar tudo aos humanos em troca de quase nada. Quanto ao vosso urso peludo, parecidíssimo com o último que tive (até na conduta), há duas evidências logo à partida.
Primeiro: ele tem excesso de energia, sendo necessário proporcionar-lhe actividade física suficiente para lhe moderar os ímpetos. Como sabe, ele é um cão dos pastos, dos montes, do movimento permanente.
Segundo: ele é ainda, praticamente, um bebé, e alguns dos seus comportamentos (não todos) vão atenuar-se com a idade. Tal como sucede com qualquer bebé humano, detesta que lhe tirem os brinquedos (a cebola, a batata, o prato, o sapato…). O bebé humano, como não pode morder (não tem dentes…), berra, estrebucha e põe a casa em estado de sítio se lhe tiram o brinquedo. O urso peludo rosna (um aviso) e, no extremo, pode morder. Ele não compreende, enquanto não for educado (treinado), por que razão lhe querem “roubar” o que é dele, isto é, os seus brinquedos. A batata é dele. O prato é dele. Gritar, não adianta; bater, muitíssimo menos.
Há técnicas de treino que ajudam a superar o problema, em que a trela, a paciência, a firmeza e a disciplina das aulas operam maravilhas. Há várias coisas interessantes na Internet sobre isto (a menos que prefira pagar a um treinador especializado).
Nós conseguimos resolver tais comportamentos sem esse recurso. Mas teve que ser treinado. Com uma excepção: quando ele se alimentava, ninguém podia interpor-se entre ele e o prato. E foi assim até ao fim da sua vida de treze anos. Era um qualquer condicionamento ancestral, vindo do fundo dos tempos, como pressuposto da sobrevivência dos seus antepassados (e, agora, da sua própria sobrevivência). No entanto, ele era uma “santa alma” quanto a tudo o resto e fez as alegrias de muita gente.
Vou ver se lhe mando por e-mail alguma coisa que possa ajudar.
Uma noite feliz.
O cão precisa de ser treinado para perceber que o chefe é o humano, todo o humano da família, mesmo se criança. E que tudo está na sua disponibilidades. Especialmente a comida. De pequeno, o cão têm de aprender que só come após ordem do dono. O Chefe dá e tira a comida quando quer, até que o animal aprenda quem é a autoridade na família. Se esse trabalho não for feito desde o início, o mais certo é que o animal morda se lhe mexem no prato, ou em qualquer brinquedo ou, até, no sítio em que se instala. Todo o carinho e atenção ao animal, mas nada de confusões quanto a saber quem manda na família. Esta é a minha experiência de muitos anos com cães de Castro Laboreiro e cão de gado Transmontano, em ambiente de trabalho, no caso, na guarda de propriedade. No meu caso, enquanto cachorros, e até que aprendessem, obrigava-os a sentarem-se e, pondo-lhes a comida na frente, só os autorizava, por gesto do dedo indicador, a avançar para ela após alguma salivação. Nunca tive qualquer problema.
ResponderEliminarEspero ter ajudado.
José Duarte e Anónimo dos cães de Castro Laboreiro e de gado transmontanos,
ResponderEliminarGostei muito de ler o que escreveram. Convergem nos fundamentos: o cachorro tem que perceber que não é ele que manda. Lendo-vos e percebendo a vossa empatia com os cães, sinto-me ajudada e compreendo melhor o 'bicho'.
Compreendo também que há, da minha parte (ou melhor, da minha e do meu marido), uma falta de disponibilidade para, persistentemente, o ensinar. Quando o mando sentar-se e ele se senta, fico logo por ali pois penso que está aprendido. Não fico a ensiná-lo nas outras regras e ensinamentos. Outras vezes, penso que ele está melhor e depois é com surpresa que e pena que vejo que reincide naquilo que não quer. Por exemplo, se estou a brincar com ele no jardim, corre, anda na boa, brinca. Mas mal recebo uma chamada e paro de brincar, põe-se de pé, agarra-se-me às pernas, mordisca-me, quase me impede de andar. Como estou ao telefone não consigo falar para me zangar e o que acontece é que chega a magoar-me.
Mesmo agora esteve bem comportado, no chão, a brincar. De repente saltou para o meu lado, no sofá, e quando o mandei para o chão, na brincadeira, agarrou-se-me à manga do casaco e creio que para me prender o movimento, enfiou-me um canino no pulso que me abriu um buraco que me doeu à brava. Tirei o chinelo e dei-lhe uma sapatada. Deitou-se, muito infeliz e adormeceu. Mas fiquei com mais um ferimento.
Não há dúvida que tem excesso de energia e que deveria correr e saltar e não estar numa sala. Só que à noite não vamos deixá-lo na rua. Aliás, adora andar de sofá em sofá...
A ver se entre o Natal e o Ano Novo consigo ter mais tempo para ver se lhe consigo dar alguma instrução.
Quanto a deixar tirar o que tem e que até há pouco rosnava e queria morder, agora já uso a psicologia e já consigo dar-lhe a volta, na boa. E tem corrido bem.
Muito obrigada. Os vossos conselhos são preciosos. Ajudam e muito.
Um bom domingo.