sexta-feira, dezembro 10, 2021

Eram novos e não sabiam.
[Se bem que agora ainda estejam bastante benzinho*]

 


Eu tinha um gira-discos só meu. Era um aparelho praticamente portátil. Não era uma aparelhagem como a que os meus pais tinham na sala, com colunas em separado, amplificador em separado. O meu fechava-se com uma tampa e tinha uma pega. Estava no meu quarto. A mobília do meu quarto era clara, de linhas direitas, moderna para a época. Foi feita a feitio numa marcenaria, certamente desenho do meu pai com mão da minha mãe. Havia uma superfície em L que ocupava uma parede e meia. Na meia parede estava também a minha cama. A zona da secretária era ampla. Não havia computador. Tudo era analógico. Livros, cadernos. E, ao lado, o gira-discos. 

A bridge over troubled waters tocava muito por essa altura. Era daquelas baladas que enlevava a alma da menina que eu ainda era e se iniciava na adolescência. 

Depois havias as festas de anos. Éramos um grupo de miúdos muito unidos que, em conjunto, descobriam a ternura da aproximaçao da atracção sexual. Tinha treze, depois catorze, depois quinze, depois dezasseis anos. Nuns casos, as festas eram no quarto ou na sala do aniversariante. Outras vezes em garagens que eram transformadas em discotecas dançantes. Os adultos mal se viam. Deixavam o espaço para os jovens. 

Nesse grupo havia dois rapazes que viriam a entrar para o Técnico e tornar-se engenheiros electrotécnicos. Na altura eram apenas miúdos habilidosos. Montavam amplificadores, levavam colunas, montavam luzes que piscavam e perdiam vigor, quase se apagavam. 

Havia muitos discos. Vários do nosso grupo tinham muitos irmãos, alguns irmãos mais velhos. Entre todos, apareciam discos e discos com grupos ou cantores que eu ia conhecendo e aprendendo a 'curtir'. 

Um de que eu também gostava muito era o Cat Stevens. Morning has broken. Por exemplo.

Gostava de dançar, ora juntinha ora gingando abraçadinha. Podia ser ao som do Morning has broken ou de qualquer outra música. 

Os anos foram avançando e eu acompanhando o Simons and Garfunkel, o Cat Stevens, a Janis Joplin e tantos outros. 

Até que hoje o meu amigo algoritmo do Youtube me propõe um vídeo. Art Garfunkel. 

Estavam dois homens desconhecidos, um tocando, outro cantando. A voz, agora mais trémula, parecia, de facto, a de Art. Mas onde os caracóis, onde o homem da testa alta e cabelo arruivado e hirsuto? Pensei: não pode ser. 

Fiquei a ouvir. Agora é um homem quase velho... e não dava tempo a ele, de repente, se ter tornado assim quase tão velho. Ná. 

Olhei melhor. O nariz parece, a voz parece. Mas poderia alguém ficar assim tão velho de um momento para o outro? Não, nem pensar.

Fui googlar. Vi fotografias actuais. É ele, de facto. É ele. Não sei como mas é. Revi o vídeo. O sorriso é jovem. A atitude é jovial. Fui ver a idade. 80 anos. Revi. Oitenta anos. Oitenta? Como? Mas depois pus-me a fazer contas de cabeça e a racionalizar. Qual de repente...? Onde é que eu tenho andado com a cabeça para não ter percebido que já passaram estes anos todos...?

E, então, lembrei-me de ir ver como está agora o Yusuf, ex-Cat Stevens. Apesar de tudo parece que não está tão diferente. Fui ver a idade. 73. Já setenta e três. Já? 

Até me lembrei de um amigo que encontrei há pouco tempo. Conheço bem a mulher com quem vive, embora continue casado com a primeira. Perguntei-lhe por ela. A rir, respondeu-me: 'Vai ser operada às cataratas. Imagine... Fui eu deixar a minha mulher para arranjar uma velha...'. Desatámos os dois a rir. 

A gente ri, ri, mas a verdade é que é assim mesmo: se nos formos mantendo vivos, os anos vão passando por nós e, quando damos por ela, os que conhecemos jovens aparecem-nos já velhos e nós mesmos um dia vamos olhar para o espelho e também vamos perceber que, se deixarmos de ser condescendentes para com a imagem que observamos, também não fomos poupados. 

Mas isso não é grave. Grave é quando começam a morrer os da nossa idade ou mais novos que nós. Isso faz-me muita impressão.

Estou a ler o 'Para quê tudo isto?', a biografia de Manuel António Pina escrita por Álvaro Magalhães. Era um autor que muito admirava (e admiro). Quer através da sua poesia quer das suas crónicas, eu acompanhava a forma elegante e inspirada como cerzia as palavras. Fez-me impressão quando partiu. Se me tivessem perguntado teria dito que para aí há uns quatro ou cinco anos. Pois. 

Não ando a medir bem o tempo. Já há nove. Também não percebo. O que fiz durante estes seus nove anos de ausência? Não sei. Não percebo.

Com este livro, comecei como tantas vezes faço: a ler do fim para o princípio. Não sei porque é que, num caso assim, o faço. Já sei como é que acaba. Só se involuntariamente quero poupar-me já que, ao caminhar ao contrário da linha do tempo, irei conhecendo os seus anos de boa saúde, de motivação e descoberta, os tempos em que não havia fim à vista nem dores nas costas nem internamentos.

E aqui estão os que, em tempos, foram jovens. Não que hoje estejam fisicamente piores. Estão é fisicamente alterados pelas areias do tempo. Bonitos como sempre. Bastante benzinho, até.



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Pinturas da Paula Rêgo.

(* o asterisco na palavra benzinho no título, naquele contexto, não é acidental)

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Desejo-vos um dia bem feliz

3 comentários:

  1. José Duartedezembro 10, 2021

    E como é que está o pequeno urso peludo? Já tenho saudades dele... Espero que não tenha sido "rifado", como castigo dos pequenos deslizes juvenis característicos da sua raça. Tudo aquilo se transformará, quando for adolescente e, sobretudo, adulto, em cascatas de dedicação e afecto pela família humana (falo por - gratíssima - experiência própria).

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  2. Verdade, também tenho " saudades" do ursinho peludo. Sempre a fazer as asneiras habituais na sua tenra idade, mas cada vez mais "delicioso" com os donos. Todos são assim, na verdade..Maria

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  3. Maria e José (só falta o menino Jesus...),

    Hoje falei um pouco e expliquei porque não falei mais. A ver se amanhã falo, ok?

    Obrigada. Gostei que sentir que tinham saudades do pequeno urso cabeludo.

    Um bom sábado.

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