domingo, outubro 03, 2021

Um homem que partiu cedo demais

 


Ontem à noite pensei numa pessoa que me foi muito querida. Mais do que um colega com quem me dei muito bem, foi não apenas um amigo mas, sobretudo, uma pessoa que deixou as mais gratas memórias.

Já aqui falei dele algumas vezes, por vezes em episódios avulsos. Era daquelas pessoas de quem sempre se podiam contar muitas peripécias. 

No outro dia. falei de quando comecei a trabalhar em ambiente empresarial: uma grande, grande empresa, com uma longa, longa história, em que havia muita gente ainda a trabalhar de forma que a mim me parecia arcaica. Mas havia muita gente nova. Viviam-se tempos expansionistas, havia projectos com fartura e um enorme bando de jovens licenciados criava uma permanente animação um pouco por todo o lado.

Várias dessas pessoas acompanharam-me profissionalmente durante anos. Um deles viria a tornar-se um dos meus melhores amigos. Outro quase também. Outros apenas bons amigos (o que, convenhamos, não é pouco). Naquela empresa eram quase só homens e, com formação superior, as mulheres contavam-se pelos dedos da mão. Porque as coisas estavam organizadas dessa forma, eu quase apenas tinha contacto com os ditos licenciados. Até o refeitório tinha um horário e um local que eram destinados aos 'quadros'. Mas, elitismos à parte, era também uma questão geracional. As idades eram relativamente afins, as vivências também.

De todos aqueles jovens turcos, um destacava-se naturalmente. Não seria o mais 'apessoado' mas era um homem interessante. Mas era sobretudo um misto de muita coisa em generosas doses: hiperactivo, hiperdivertido, hiperinteligente. Onde ele estava, não havia lugar à monotonia ou à indiferença.

As mulheres caiam de amores por ele. A secretária do director era das mais apaixonadas. Mas havia outras. Tinham crises de ciúmes, ameaçavam denunciar-se umas às outras. Ele geria isso com boa disposição. Eram todas casadas e não era com ele. Tal como ele era casado e não era com nenhuma delas. Mas, se bem me lembro, tenho ideia que ninguém os censurava. 

Mais tarde, quando já éramos directores, uma equipa de, salvo erro, umas catorze pessoas, todos reconhecíamos que era ele o mais brilhante. Não era apenas a forma como delineava estratégias e as punha em prática mas também a forma como contribuía com boas ideias para as outras áreas, como trabalhava bem em equipa, como era sempre fair, como tudo o que dizia e fazia transpirava energia e joie de vivre.

Foi com ele que aconteceu aquilo de ter sido apanhado, fora de horas, no seu gabinete, a ter relações com uma colega de outro serviço. Toda a gente comentava e ele piscava o olho e ria. Nada parecia afectá-lo. Estavam em cima da mesa que, mais tarde, viria a ser a minha mesa de reuniões e da qual toda a gente dizia: 'se esta mesa falasse...'.  E ele, se o ouvia, ria-se. Era atrevido, descarado, bem disposto.

Numa altura, por razões que agora não vêm ao caso, a empresa quis aumentar brutalmente as vendas. 

A ordem era 'venda-se', 'alcancem-se as melhores facturações de sempre', 'esmague-se a concorrência'. Disseram-nos explicitamente: 'overbooking, se for caso disso'.  As nossas reuniões de trabalho eram de loucos. Ele vendia como se não houvesse amanhã. Na logística, nos aprovisionamentos, na produção, em todas as áreas, era a loucura. Dar vazão àquela avalancha de pedidos de compra por parte dos clientes era uma montanha russa em que uns dias nos ríamos e noutros nos pegávamos uns com os outros. Ele avisava: querem vendas, eu arranjo-as. Mas atenção que isso tem custos. Mil vezes, em público, avisou a administração. Mas alguém queria lá saber disso? Queriam era números.

Até que mudaram os ventos. O objectivo do record de vendas tinha sido atingido. 

Quando as canas por apanhar começaram a aparecer, quem tinha pedido, a qualquer custo, um valor extraordinário de vendas, saltou fora. Havia muitos incobráveis. Ele tinha vendido sem acautelar se os clientes tinham capacidade financeira para pagar a tempo e horas. Por muito injusto que fosse, quem estava no degrau acima, ao querer desresponsabilizar-se, fez a jogada clássica: começou por lhe fazer a vida negra para, de seguida, convidá-lo a sair da empresa.

Com a alegria de sempre, ao ter percebido o descaminho que aquilo ia levar, deixou de descartar os convites que frequentemente recebia. E, quando o outro o convocou para o convidar a sair da empresa, ele surpreendeu-o, apresentando a carta de demissão.

A notícia caiu como uma bomba em toda a empresa. Toda a gente gostava dele. O administrador iniciou, então, uma sistemática e furiosa campanha para o denegrir. Lembro-me muito bem disso. Como a campanha não lhe estava a correr muito bem, desencadeou uma caça às bruxas. Se sabia que alguém falava com o antes bestial e, depois, besta ou o defendia, era logo objecto de repreensão e velada ameaça.

Até ao dia em que descobriu que a sua secretária estava a organizar um jantar de despedida. Aí a sua campanha redobrou. Sondava-nos tentando saber se alguém se tinha inscrito, se já se sabia quem ia, dizia que quem estivesse a favor do outro estava contra ele. Fui pessoalmente alvo de toda a espécie de pressões. 

Ninguém se descoseu. 

Junto ao rio, num espaço gigante, juntaram-se centenas de pessoas. De todo o lado, vieram os seus colegas e ex-colegas, directos e indirectos. Foi um jantar muito animado e, ao mesmo tempo, muito emotivo. Penso que ainda tínhamos a esperança que o administrador voltasse atrás, que ele voltasse atrás. Havia surpresas e presentes para ele. Quem falava estava comovido. Mas ele, falando para aquele espaço imenso pejado de gente, falou com a sua alegria habitual. Desdramatizou. Era apenas uma nova etapa da sua vida.

E partiu. Ninguém acreditava naquilo. Como poderia a empresa tê-lo deixado ir embora?

Mas nas empresas a injustiça é frequente. Tão frequente que já ninguém se indigna muito.

Na empresa para a qual foi, toda a gente o passou a adorar. Era impossível não. Era daquelas pessoas que desenvolvia natural empatia para com os outros e que rapidamente apresentava resultados. E o seu sorriso, a sua inesgotável energia, a sua frontalidade e a sua inteligência eram irresistíveis.

Até que, pouco depois, veio a terrível notícia: tinha cancro. Foi um murro no nosso estômago. Não era possível. Não queríamos acreditar. Aquela energia, aquele poço de saúde...

Mas parecia que não era dos mais graves, continuava a trabalhar, muita gente lá nem tinha ainda dado por nada. Ia fazer os tratamentos e de lá seguia para o trabalho. 

Descansámos. Haveria de se pôr bom.

Algum tempo depois, chegaram novas notícias: parece que afinal não estava nada bem. Tinha alastrado.

Por essa altura, um dia, ao fim do dia, quase lusco-fusco, cruzámo-nos: ele descia num sentido, eu subia noutro. Ouvi apitar e alguém chamar o meu nome. Era ele. Disse que estava tudo a andar bem, sorriu, perguntou por mim, perguntou pelos meus filhos. Depois as filas andaram. Dissemo-nos adeus, até um dia destes. Apesar da fraca luz do fim do dia, pareceu-me bem encarado. Comentei isso no dia seguinte. Vinha do trabalho, de janela aberta, certamente a ouvir música, sorridente, igual ao que sempre foi. Não lhe notei sinais de dor ou mal estar, de preocupação, de tristeza, de que a sua vida estivesse por um fio. Nada. Pelo contrário, parecia que estava para dar e durar.

Dias depois chegou a notícia que ninguém queria ouvir: tinha morrido. A nossa consternação e pesar foram imensos. Não conseguíamos acreditar.

A capela mortuária estava cheia e o largo passeio também cheio. Colegas das duas empresas, todas as suas namoradas, todos os seus amigos. Ninguém conseguia aceitar ou perceber a injustiça que tinha acontecido. Da capela chegava o choro lancinante do pai. A mulher estava inconsolável. O filho, jovem adulto, era fisicamente igual a ele. Ambos, ele e a mãe, amparavam o senhor que, vergado pela dor, chorava: 'não devia ser permitido um filho ir antes do pai...'.

Isto já foi há algum tempo. 

Mas tento não me esquecer dele. A vida vai passando por nós, muitas pessoas vão ficando para trás, desaparecendo. Mas algumas foram tão especiais que é bom que, quem delas gostou, não as esqueça. Não sei bem porquê porque, na verdade, é tudo tão efémero, tão volátil, que não sei se a gente se lembrar faz alguma diferença -- mas sinto que é assim que deve ser.


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Pinturas de Zhao Mengfu (1254–1322) ao som de Take This Waltz por Leonard Cohen

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Desejo-vos um belo dia de domingo

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