quinta-feira, maio 20, 2021

Nesta vida, o que é que faz sentido?

 



Os hábitos mudam. Dantes, não assim há tanto tempo, ia uma meia dúzia de vezes por ano a Madrid. Eu gostava muito de Madrid e chegava a dizer que não me importava de lá viver. Estudava as exposições, avaliava as que valiam a pena, estudava a melhor altura para as visitar. E antecipava o prazer de andar no Retiro no meio daquela tremenda diversidade dos domingos de manhã. Vinha de lá carregada de fotografias. Tudo me agradava: a arte, os jardins, a alegria das pessoas, as lojas, os restaurantes. 

Até que, por isto ou por aquilo, as viagens foram ficando mais esparsas. Agora, se penso em Madrid, não sei bem o que lá me atrairia. 

Os museus de Paris ou de Amesterdão também são daqueles aos quais haverá sempre mil razões para lá voltar. E, no entanto, se pensar em ir passear, não me ocorre ir para lá.

É estranho, isto. 

Apetece-me passear mas, se pensar onde quero ir, só me ocorrem lugares por aqui mesmo, por perto. Ir até à Gulbenkian, por exemplo. Ir descobrir parques, ir a pequenos museus, coisas assim.


Se calhar é outro dos efeitos colaterais do confinamento. Vi que, no dia em que abriram a cancela aos turistas, aviões carregados de ingleses aterraram no Algarve. Ainda bem mas, numa altura destas, não consigo perceber esta atracção pela fuga.

Hoje falaram-me numa pessoa ainda jovem que, supostamente, terá apenas cerca de três meses de vida. Não sei como se vivem esses três meses. Não sei se será possível racionalizar, desdramatizar, programar, com a qualidade possível, o que falta para viver na plena posse das faculdades.

Nunca me hei-de esquecer da cunhada de uma amiga que, sabendo que estava às portas da morte, deu largas à sua vontade de cantar. Surpreendeu toda a gente: parecia a Janis Joplin. Fazendo anos a poucos dias do que sabia ser o seu fim, já de cama, muito mal, pediu de presente um blusão de cabedal. Eu ouvi isto com a perplexidade de quem ainda não sabia nada da vida. 


Nessa altura eu achava que as coisas deviam fazer sentido. Hoje sei que não. Hoje sei que mais de metade do que fazemos não faz qualquer sentido. Pode é fazer-nos sentir bem e isso é bom. Não devemos abrir mão do que nos faz sentir bem.

O que se faz quando se percebe, com todas as letras, aquilo que passamos a vida a ignorar, que a vida é finita? Como nos despedimos dos filhos, da sua inocência e amor, do companheiro e amado, das flores, do céu, da vista que temos da janela, dos passos que damos na nossa casa, do sol que entra pelas janelas?

Recordo-me de novo do momento em que, numa descida a caminho de uma movimentada rotunda, o meu carro perdeu os travões e, desgovernado, avançou a grande velocidade contra o que encontrasse pela frente e de como pensei, naquela breve fração de segundos, que se calhar estava a viver os meus últimos momentos e que nem tinha tempo de pensar em cada um dos meus amores. E penso como vivi esse momento sem pânico, apenas com essa prosaica constatação. E, depois do embate, lembro-me bem de, com o carro amachucado, meio no ar, meio de lado, a fumegar, abrir a porta, perceber como sair de lá e, já cá fora, ficar um bocado atónita a pensar que estava viva e sem perceber se estava ou não magoada, inteira. Apenas perplexa. As pessoas vieram a correr ter comigo, vinham aflitas, largaram os seus carros de qualquer maneira, e eu estranhamente calma, tentando perceber se nada em mim se tinha quebrado ou partido. Mas calma. O carro estava de tal maneira que foi declarado perda total. E eu apenas intrigada com a sorte que tinha tido. Aliás, sem perceber como era possível que estivesse ali, viva, a poder dar testemunho do que tinha acontecido. Chegou um carro da polícia, saltaram de lá os polícias, queriam que eu fosse para o hospital. E eu, como que anestesiada, sem precisar de nada. Liguei a um colega e pedi que me levasse. Ele espantado. Cheguei, sentei-me à secretária e comecei a trabalhar como se nada se tivesse passado. Aliás, do que me lembro, nem quis mais saber do carro. 

Tudo muito estranho.

Talvez que, quando a despedida é breve, seja assim, irreflectida e indolor. Quando tem prazo não imagino como seja.

Mas nem é bom pensar nisso. Nem sei porque falei nisto. Não vinha nada a propósito. 


Respectivamente, pinturas de Dali, Magritte, Krøyer e Montferrier, obras em exposição em Paris na companhia de Khatia Buniatishvili a interpretar o Liebestraum No. 3 de Liszt

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Saúde e alegria, seja qual for o tempo que estiver pela frente.
Enjoy 

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