sábado, maio 29, 2021

Diário de uma coxinha

 



Só para dizer que não torci o pé, nem no passeio nem noutro lugar. Também não caí e também não me caiu nada em cima dele. Quer o enfermeiro da despistagem quer o médico olharam para mim a ver se detectavam algum segredo que eu estivesse a querer esconder. Quando fui fazer o rx, a senhora, vendo o estado do dito, voltou a fazer as mesmas perguntas. E eu nada, sem explicação. Pensei: deve ser isto que acontece quando alguém quer esconder um episódio de violência doméstica, querendo que não adivinhem mas percebendo que estão a suspeitar.

Lembrei-me de quando há mais de mil anos, num dia em que estava estafada e me reclinei no sofá da sala, a minha filha que deveria ter, se tanto, uns dois anos, ainda não existia o meu filho, pequenina, rolicinha, bem disposta, toda alegre, pegou numa peça das Loucas da Fábrica de Sant'Anna que estava numa mesinha ao lado do sofá, o lado onde eu tinha a cabeça, e, numa de brincadeira, a atirou ao ar. Felizmente não caiu ao chão, senão eu teria muita pena. Ainda lá está, sobrevivente, in heaven. Mas não caiu no chão porque me caiu em cima, em cima da cara, mais concretamente em cima do nariz. Tive uma dor violenta, daquelas dores em que as lágrimas involuntariamente escorrem, e o nariz imediatamente começou a inchar, especialmente entre os olhos. Num instante os próprios olhos estavam inchados e tudo negro. Parecia que tinha apanhado uma valente pera, acho que aquilo que se diz uma pera nos cornos. Aflita, aflita, cheia de dores no nariz, pensando que ele estava partido, lá fomos para o hospital. Quando lá chegámos, a pergunta e suspeição: 'Como é que isso aconteceu...?' e olhavam de lado para o meu marido. Quer eu, quer ele, dizíamos: 'Foi ela...'. Eles olhavam para ela, uma quase bebé, e dificilmente imaginariam como é que uma coisinha fofa daquelas poderia esmurrar-me a ponto de me deixar naquele estado. O meu marido explicava: 'Acertou-lhe com uma peça de louça'. E o olhar cada vez mais intrigado. Expliquei: 'Eu estava deitada...' Mas até ao fim, acho que ficou a suspeita. Já não me lembro bem o que deu o rx mas a verdade é que passei vergonhas, que aquilo custou a desparecer e toda a gente desconfiava da explicação. E o que doía...

Pois bem. O rx ao pé não detectou nada, nada nos ossos, nada nas articulações, mas as análises assinalaram uma inflamação cujo valor era mais do dobro do limite superior do intervalo. Mas essa indicação pouco acrescentou pois a inflamação estava (e está) patente: inchaço, um vermelho escuro, a pele lustrosa e quente. 

No fim, perante o rx e as análises, voltaram as questões: nada que explique isto? não se lembra de nada? uma entorse...?

Se, na altura, já soubesse, poderia ter respondido que talvez mas por simpatia, os efeitos sem ter havido a causa física. Mas não sabia pelo que me limitei a encolher os ombros.

Portanto, pé elástico, em cima de uma banqueta, gelo, analgésicos. Não pode haver carga, disseram. Sem problema, pensei. Há um par de canadianas cá em casa. Os miúdos gostam de andar a brincar com elas. Afinal não conseguimos ajustá-las, parece que desapareceu a peça que permitia rodar a parte de dentro para pô-las maiores ou mais pequenas. A ver se amanhã conseguimos passar por uma farmácia a ver se algum truque nos está a passar.

Portanto, o meu dia foi assim: reuniões, telefonemas e análises de documentos gigantes, mal estruturados e confusos sem a atenuante de poder andar enquanto telefono, sem caminhada à hora de almoço, sem tempo para respirar. Acontece que, de dia, não tomei o ben-u-ron e a dor começou a ser mais incomodativa. Ora uma pessoa com dores fica impaciente. Eu, pelo menos, fico. Provavelmente alguns dos meus interlocutores acharam que eram eles ou os seus assuntos que estavam a irritar-me e, afinal, era o pé a doer-me. Ainda por cima, estando inchado (na parte de cima do peito do pé, de lado a lado, e na ligação à parte da frente da perna), não consigo enfiar as sapatinhas que uso em casa. Portanto, às tantas estava também com frio nos pés, em especial no pé coxo. 

E depois há aquela coisa enervante. Vou buscar um copo de água e, como levo séculos a chegar à cozinha, levo o telemóvel não vá o diabo tecê-las. Quando regresso, instalo-me e... toca o telemóvel na cozinha... E lá vou eu outra vez, coxinha... Ou lembro-me que preciso de ver uma coisa e... a coisa está sempre longe de mim. Para não me fazer de inválida lá vou devagar, a arrastar o pé. O meu marido vê-me, fica fulo porque, segundo ele, gosto de me armar em valente... Um desatino.

Ou seja, é esta a triste descrição de um dia dolorido e sem história. 

Claro que, durante o dia, aconteceram mil coisas, algumas dos diabos. Mas são coisas que não são para aqui chamadas, Portanto, com vossa licença, fico-me por aqui. Vou descansar que esta semana não foi pera mole. 

E estamos quase a entrar em Junho, ou seja, no verão. Que aceleração do tempo é esta? Está a acontecer isto com toda a gente ou sou eu que ando distraída?

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Os lábios artísticos são obra de Andrea Reed e estão aqui para ouvir David Gilmour a interpretar Hickory Wind

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E não deixem de saber da mais recente novidade: 

a última vítima da vacina contra a Covid -- uma perda para a humanidade

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Um belo sábado.

E toca a saltar para festejarem a sorte de não estarem coxos...!

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