Raramente agora uso saltos altos. Só quando tenho que calçar forçosamente sapatos pretos. Não sei dos meus sapatos pretos, básicos, de meio salto a que tanto recorria. Eram meio em pele, meio de camurça e com salto não excessivo nem em altura nem de finura. Provavelmente ficaram in heaven do primeiro período de confinamento. Os que tenho cá são uns bem altos, outros em dois tons ou, outros, num modelo adequado a quem tem o pé feito a sacrifícios. Agora, andando maioritariamente de ténis ou chinelóides, até tremo quando me arranjo toda a preceito e, quando estou para sair, constato que tenho que usar sapatos pretos. Lá tenho que trepar para os que cá estão.
Écharpes também. Raramente as uso. Em casa não vou estar de echarpe. Se saio ao fim de semana ou, durante a semana, ao fim do dia, para as compras ou outros afazeres, também não vejo sentido em grandes aperaltamentos. Jeans ou afins, blusas simples, um casaquito básico ou um poncho. Apenas se vou a trabalho reencontro aquele ritual que era tão meu. Mas aquelas precedências que eram tão intuitivas, falham. Vou a sair, toda pronta, e quando vou calçar os sapatos, verifico que ainda estou com as meias de algodão ou lã fina que uso em casa. Coisas assim.
Também nunca mais usei o meu relógio. Era inseparável dele. Só ao fim de semana é que não o usava. Isso e a aliança. Nunca mais a usei.
Ai... caraças... (já venho)
Bolas. Bolas!
Já apanhei um susto. Nem vos conto. Que susto.
Estava a escrever isto e, de repente, ocorreu-me que há mais de um ano que não os uso. Entretanto mudei de hábitos, mudei de casa, mudei de emprego. E deu-me um susto: onde estariam? Com o coração a palpitar, fui à procura, cheia de medo de lhes ter perdido o rasto. Tinha muito presente onde os tinha, na outra casa. Mas agora tudo mudou de sítio, não apenas em termos absolutos mas, também, em termos relativos. Dantes, usava o quarto que tinha sido da minha filha, para ter as minhas coisas à larga. Em cima da secretária dela, tinha uma caixinha onde tinha os anéis de uso corrente e era aí que todos os dias, ao chegar a casa, colocava anéis, aliança e relógio. De manhã, o gesto era também automático: depois de me perfumar e vestir, escolhia o anel e o colar que iam bem e a aliança e o relógio.
O relógio já o contei: inseparável dele. Tem um peso, um toque, uma elegância de que não conseguia desprender-me. O ponteiro das horas avariou. O dos minutos estava bem. Eu usava-o assim mesmo. Até que resolvi que não fazia sentido. O arranjo custou uns duzentos ou trezentos euros, nem sei. Voltei a poder ter horas certas. Até que, passados uns tempos, talvez uns dois ou três anos, voltei a notar que o ponteiro das horas começava, de novo, a perder a pedalada. Deixei-me estar. Por mim, sem problema. O pior eram as outras pessoas: dava por elas a espreitar-me para o relógio, depois olhavam para o delas. Algumas ultrapassavam a barreira da indiferença e diziam: acho que o seu relógio não está certo. E eu explicava o que expliquei mil vezes: só o das horas é que não está bem. As pessoas ficavam meio desconcertadas. Uma pessoa sabe sempre mais ou menos as horas, não sabe é os minutos. Portanto, como o ponteiro dos minutos estava bem, eu orientava-me. Ainda pensei voltar à ourivesaria reclamar da reparação. Mas a reparação já tinha uns dois ou três anos. Depois meteu-se a pandemia. Agora já nem moro perto.
Agora, quando vou trabalhar presencialmente, nem me lembro do relógio ou da aliança. Também estou a pensar que antes punha sempre rímel e que nunca mais o pus, nem de tal me lembrei. Baton ou gloss agora só uso em teletrabalho. Na rua ou no trabalho presencial não, só serviria para sujar a máscara. Parece que eu, a meus olhos, já só existo bem na versão nude: no make up, no toilette, no high heels.
Quando ouço falar no regresso à 'normalidade' estremeço por dentro. Não sei se sou capaz de voltar a andar metida no trânsito em horas de ponta, não sei se sou capaz de voltar a andar todos os dias de saltos altos, aperaltada, todos os dias a comer em restaurantes, todos os dias confinada em torres e todos os dias rodeada de gente que, muitas vezes, não nos permite sermos donos da nossa própria agenda.
Mas, dizia eu que apanhei um susto ao escrever sobre o relógio e a aliança: afinal já os encontrei. Senti um tremendo alívio. Nem imagino a aflição em que ficaria se não os tivesse achado.
Esta sexta-feira, ao fim do dia, fomos à outra casa ver se estava tudo bem, trazer o correio, buscar comida feita para o jantar e para o almoço de sábado. De caminho, pensei parar para ir procurar mais duas suculentas e uma nova taça. É que, no outro dia, ao distribuir as que tinha comprado, tinha-me sobrado uma. Mas então não é que, antes de ir pagar, tive uma chamada que me fez distrair-me por dois minutos? Mal dei por ela, já o meu marido as tinha posto deitadas, dentro da taça de barro. Conclusão: partiu várias folhas, fez outras tantas caírem. Nem queria acreditar. Fiquei passada. Mas, sonso como é, achou que eu devia estar maldisposta por outra coisa qualquer para estar tão chateada por motivo tão nulo. Fiquei ainda mais passada. Disse-me que não estivesse ao telefone em vez de estar a tomar conta delas. Desisti. Ao chegarmos, sendo já tarde, de noite, não pude ocupar-me delas. A ver se faço um bercinho para tentar que das folhinhas partidas renasçam novas flores.
Só me apetece ir tratar disso. Não me apetece pensar nas chatices que invadiram o meu dia nem noutras maçadorias. Só em jardinagens, coisas simples, andar com as mãos na terra, pensar em coisas boas.
E é isto. Ou melhor, não passa disto. Passa das duas da manhã. Tenho que me levantar cedo. Por isso, vou parar com esta conversa mole, que não ata nem desata.
Cara UJM,
ResponderEliminarA experiencia de 45 anos de casamento, lembra-me que homens e compras não combinam.
Cá por casa há muito que optei por fazê-las sozinha. Exceto compras para a neta mais pequena.
E então se forem brinquedos fica entusiasmadíssimo.
No que toca a sensibilidade com flores e plantas... começa por lhes chamar hortaliças. Já aconteceu deitar no porta bagagens um vaso com uma orquídea rara de cores lindas, oferecida por quem faz do seu cultivo um culto.
Quanto às suas gordinhas, experimente enterrar um pouco as folhas caídas junto da "mãe". Por vezes pegam e até se reproduzem..
Um bom fim de semana.