domingo, fevereiro 07, 2021

Talvez um buraco habitado pelo vazio

 



Estes dias são muito absurdos. Vivo num lugar que até é agradável mas, estando confinada, tanto poderia estar aqui como noutro lugar qualquer. Quando, no confinamento do ano passado, nos mudámos para o campo também estávamos ali como se o mundo fosse apenas  aquele lugar. Agora também. Saímos para fazer uma caminhada aqui à volta e, de momento, este é o nosso mundo.

Tem estado, por aqui, muito frio, vento, húmido, chuviscoso. Desagradável. Saí para dar uma volta pelo jardim por volta das seis e, pouco depois, tive que reentrar, o frio estava mau, triste, escuro. 

Aos sábados gosto de dormir até mais tarde para pôr o sono em dia. Mas tinha-me esquecido de desligar o despertador pelo que acordei cedo e já não consegui voltar a adormecer. De tarde, reclinei-me no sofá, pensando repor a situação. Contudo, estava a começar o Samba no canal Hollywood, filme que em seu tempo tinha visto no escurinho de uma sala de cinema, e não quis deixar de rever. Por isso, não dormi de tarde a agora ainda estou com sono.

E mais? Que dizer mais? Nem sei bem.

Talvez que os dois aquários da família já fizeram anos e festejámos -- que é como quem diz -- através de videoconferências. Em qualquer das vezes foi aquela complicação do costume para a minha mãe se pôr a bordo. Cantámos os parabéns em coro, a várias vozes, em total desafinação. Por estes tempos, os presentes chegam por correio e os beijinhos são dados por palavras. No outro dia, dizia a um menino pequenino que nos desse uma fatia de bolo. Disse que não podia ser. Dissemos que estendesse a mão que nós agarrávamos o bolo. Ele assim fez com a sua mãozinha. Encolheu os ombros e disse: é um bolo invisível. E o meu coração derreteu-se em ternura. Estão todos mais crescidos. Há muito tempo que não os abraço à vontade. Ultimamente abraçava-os pelas costas, beijava-os na nuca. Será que ainda vão aceitar que eu os puxe para o meu colo e os abrace e os encha de carinhos? Não sei. Se calhar ficam com receio que os contagie. Este vírus é diabólico, sequelas all over mesmo em quem não é directamente infectado.

No outro dia, fartos desta monotonia, resolvemos ligar para um dos restaurantes onde íamos, às vezes, jantar. Não faz entregas aqui, apenas ali perto. É o filho que vai entregar. Resolvemos ir nós lá. Fiquei no carro. Contou o meu marido que o restaurante, antes cheio que nem um ovo, estava (obviamente) vazio. A mulher na cozinha, como sempre esteve, mas sem ajudantes, só ela. Ele cá fora na sala a atender os pedidos (por telefone). E o filho a ver se tinha que ir fazer entregas. Diz o meu marido que estavam de máscara, o senhor com um cabelo muito grande. Não se deve ajeitar a cortar em casa. Nesse dia, uma vez chegados a casa, preparámos um gin, depois refastelámo-nos com um belo jantar que não tive que confeccionar e, no fim, para acompanhar a bela sobremesa que também veio de lá, bebemos uma bela ginja de Óbidos. Ao ver a garrafa, lembrei-me que a comprámos lá, num passeio que lá demos entre o Natal e o Ano Novo de 2019. Passeámos com vagar, subimos e descemos as ruínhas, entrei nas livrarias. Parece que foi há uma eternidade. 

Era, para nós, muito natural passearmos. Agora, mesmo que, dentro de algum tempo seja levantado o confinamento, já teremos adquirido outros hábitos. Já não iremos com a mesma naturalidade a restaurantes, quereremos verificar se estão arejados, se há distanciamento, estaremos atentos às máscaras, teremos receio que alguém tenha tossido e deixado gotículas no lugar ou nas coisas em que vamos mexer. 

Estranho, tudo isto.

Enfim.

No meu jardim reina o silêncio. Mal se ouve algum pássaro. De vez em quando, algum lá bem no alto, muitas vezes ao longe. De todos aqueles que tanto cantavam agora nem um pio. Não sei onde andam. Estarão transidos de frio, sem vontade de alegrias?

Há ainda laranjas nas laranjeiras e são muito, muito doces. E tangerinas. Mas estas caem muito. O jasmim está a ficar florido. Não consigo deixar de lá mergulhar o rosto para aspirar o perfume que é intenso demais para o meu gosto. Ainda assim cheiro. Quero perceber se o perfume vai evoluir.

Uma outra trepadeira, uma que deixou a anterior proprietária espantada pelo que cresceu, está agora a florir, uma flor com uma cor inesperada, muito bonita.

Também fiquei admirada com outra coisa. Ainda não compreendi a dinâmica dos meus novos vizinhos. Dá ideia que é uma comuna de rapaziada. Não consigo descortinar a lógica do grupo. O meu filho diz que deve ser malta que está a formar uma empresa. Espanto-me: iriam alugar uma moradia destas...? O meu marido, para quem nada disto interessa e que goza com a minha curiosidade, para apimentar o mistério fala de outras hipóteses, qualquer delas improvável e estapafúrdia. Mas, dizia eu, estava a sair da sala para um passeio pelo meu jardim, dou de caras com um dos jovens, saindo também da sua, de boné. Devia ir pôr comida nos cães, digo eu. Não sei se anda em casa de boné. Pelos vistos, anda. Sol não há na rua e, em casa, muito menos. Mas, então, ao dar de caras comigo, sorriu abertamente, fez-me adeus com a mão, e disse-me um 'olá, bom dia'. Fiquei muito admirada pois parecem-me sempre muito lá na deles, sempre enfiados em casa, se saem para o alpendre é para estarem na conversa uns com os outros, totalmente alheados em relação à casa do lado. Juraria que nunca antes me tinha visto. E, no entanto, cumprimentou-me com um ar surpreendentemente amistoso.

E eu estar a relatar isto revela bem a falta de assunto que envolve estes meus dias. Nada mais há a relatar. Li, vi televisão, fiz o almoço, fiz um jantar ligeiro, fiz alguns pagamentos, tratei de algumas coisas que, durante a semana, ficam por fazer, fiz os meus telefonemas. O dia correu devagar. Nem é o ser devagar. É a sensação de inutilidade. Parece que estou num buraco inespacial, intemporal. Antes, os meus dias estavam preenchidos de mil coisas para fazer, ia aqui, ia ali, alguém vinha cá, não tinha tempo para mim nem para descansar. Tantas vezes me queixei: gostava de ter um bocado só para mim. Agora é o oposto. O oposto mais oposto que é possível.

Várias vezes ao longo destes dias também me apetece ir passear. Meter-me no carro e ir por aí. Descobrir lugares, olhar pela janela do carro, ter vontade de parar para fotografar, deleitar-me com a beleza que sempre me surpreende. Quando poderei voltar a passear? Íamos passear, íamos descobrir restaurantes, íamos descobrir hotéis. Agora, se formos passear se calhar levamos farnel. Não sei. Parece que não sei pensar nem fazer planos. Parece que acho que não vale a pena fazer planos. E o vazio parece que fica ainda maior.

No outro dia estava a pensar que deveria ter mais uma mesa debaixo do alpendre. O meu marido disse que não, que a mesa que lá está é muito grande, cabemos todos, e ainda temos a mesa desdobrável e mais a outra pequena, redonda, de ferro. Mas eu fiquei a pensar que antes nos encostávamos todos uns aos outros e que, se calhar, nem tão cedo vamos sentir-nos à vontade com essa proximidade. Pelo Natal dividimo-nos por três mesas, distantes umas das outras. Será que, nos próximos tempos, será sempre assim? E sê-lo-á durante tanto tempo que nos esqueçamos que, antes, o normal era estarmos próximos, conversando, rindo, sem receio, descontraídos?

Ao ver o grupo abaixo, um grupo de belas e elegantes mulheres -- todas mulheres Chanel -- conversando em volta de uma grande mesa, todas distantes umas das outras, pensei que vão passar a ser precisas mesas de uma dimensão bem maior do que as anteriores. A vida aos poucos irá distanciar-se do que era, não irá? E todos nos distanciaremos uns dos outros. 

__________________________________________________________________ 

O charme discreto da Casa Chanel, o charme discreto da burguesia

A roundtable conversation hosted by Caroline de Maigret with ambassadors and friends of the House Penélope Cruz, Marion Cotillard, Charlotte Casiraghi, Vanessa Paradis, Alma Jodorowsky, Lily-Rose Depp, Izïa Higelin, Blesnya Minher and Joana Preiss.Filmed after the CHANEL Spring-Summer 2021 Haute Couture show at the Grand Palais in Paris
.

________________________________________

As flores foram fotografadas por Doan Ly

Lá em cima, Trois Gnossiennes por Hans van Manen com Ludmila Pagliero e Hugo Marchand

_________________________________________________________________

Desejo-vos um bom e feliz dia de domingo

7 comentários:

  1. muitos ÷ o × a = muitas

    ResponderEliminar
  2. fosseapenas = fosse × apenas

    ResponderEliminar
  3. O+l+á,

    Do fosseapenas eu já tinha dado por falta do _ mas do muitos que não é muitos mas muitas eu não dou conta. Não quer enviar as coordenadas ou as adjacências?

    Gracias!

    ResponderEliminar
  4. Ai... não encontro. Terá que ser mais preciso e fazer o favor de dizer as confrontações. Se calhar está mesmo à vista...Sorry mas não descubro.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. De vez em quando, algum lá bem no alto, "muitos" vezes ao longe.

      Eliminar
  5. Bolas... que burra... estava à procura no post errado... Eu a ver o que estava a sul de outra flor. E já ia em sudoeste, em sudeste...

    Afinal aqui verifica-se o que se verifica na vida real: sempre que tenho oportunidade para me perder, perco-me.

    Já corrigi. Thanks, mil vezes thanks, sobretudo pela paciência. Não há gps que ajude uma despistada...

    ResponderEliminar