quarta-feira, janeiro 06, 2021

Uma coisinha sobre a vida

 


Estou a ver um programa sobre o João Cutileiro. Mais um que se foi. Dirão os mais sensatos que é a lei da vida. E é. Ninguém cá fica. Acontece que, para quem está nessas idades e ainda tem o gosto pela vida, essa lei é cruel. Se olharmos com distanciamento, e é inteligente que o façamos, achamos que nem vale a pena ter pena lamentar quando os velhos se vão. E esquecemo-nos que, se vivermos até essa idade, esses velhos seremos nós, um dia. E, um dia, talvez olhemos a vida com pena que tenha decorrido tão depressa e que ainda tenhamos tanta coisa para fazer, tantas palavras por dizer. 

A vida passa e as oportunidades também.

Sempre gostei muito de escultura e, se tivesse as minhas fotografias organizadas, poderia aqui mostrar as fotografias que, ao longo do tempo, fui fazendo a obras de Cutileiro. Por isso, vou ter que usar fotos obtidas na net.

Não sei se ele estava fatigado e com vontade de descansar ou se ainda tinhas trabalhos em curso ou em mente. Não sei se ele percebeu o que ia acontecer e teve pena ou se não deu por isso ou, se deu, se se sentiu puxado pela tal luz branca, indo, feliz, nessa direcção. Sei é que eu tenho pena.

Convivi de perto com o lento caminhar para a morte e sei como pode ser doloroso. Depois de ter ficado diminuído pelo avc, durante algum tempo havia desespero no meu pai. Impaciência. Queria recuperar os seus bons tempos e via que isso não ia acontecer. Antes pensava ser um homem saudável. Em boa forma física, aspecto jovem, não tinha doenças. Contava, com orgulho, como a sua vida saudável o trazia tão bem. Explicava a alimentação que seguia -- muito peixe, pouco sal, muitas saladas, muita fruta -- explicava os longos passeios no campo ou na praia. Nunca lhe ocorreu que um dia poderia acontecer-lhe o que lhe aconteceu. Mas aconteceu: nesse dia tudo se foi. Não valorizou as ameaças anteriores. Não ficou com medo. Achava-se sempre capaz de superar essas ameaças. Só que aquela, tão grande que quase o levou, venceu-o a ele. Mas levou doze anos a levar-lhe a melhor. Perdeu o andar e voltou a andar, perdeu a fala, recuperou a fala, perdeu a independência e voltou a recuperá-la. Mas nunca completamente. E sempre de uma maneira que se sentia ser efémera. Quando parecia estar melhor e a progredir no sentido da recuperação, apanhava uma pneumonia, depois uma bactéria hospitalar, depois voltava a perder o andar, a piorar. Ou, uma vez, no dia um do ano, caiu em casa, partiu uma perna, teve que ser operado. Não voltou a andar. Sempre assim. Desilusões sucessivas para ele, para nós.

As sequelas foram tão extensas e profundas que teve que passar a estar fortemente medicado. Alguns medicamentos tinham efeitos secundários que confundíamos com o seu próprio e intrínseco estado físico. Se estava agitado, enervado, não sabíamos se era alguma coisa nele ou de algum medicamento. Se estava ausente, não sabíamos se tinha tido outro acidente ou se estava sedado em excesso. Muitas vezes, resolvíamos retirar parte da dosagem, aos poucos, para ver se voltava a estar mais normal. Mas logo notávamos que isso tinha consequências que se calhar eram pior para ele. O neurologista dizia: vão aferindo, tentando acertar na melhor dose consoante ele esteja, não há outra maneira. Era muito difícil, nunca sabíamos o que era melhor para ele. E ele, antes tão orgulhosamente independente, não podia ter uma palavra a dizer sobre a sua própria condição.

Uma vez disse à minha mãe: 'Nós temos uma filha?'. A minha mãe disse-lhe que sim, disse-lhe o meu nome. Continha as lágrimas ao contar-me isso. Fiz de conta que a mim não me fazia impressão para que ela não sofresse ainda mais. No fim, quando não via, mal ouvia, e já praticamente não conseguia falar, quando eu chegava perto dele, lhe punha a mão no ombro e o beijava. a minha mãe perguntava-lhe: 'sabes quem é?' e ele esforçava-se por dizer o meu nome. Era um esforço enorme para dizer apenas uma palavra. 

Mais do que uma vez perguntou à minha mãe se já tinha morrido. A minha mãe assustava-se, dizia que não, que ideia, que não dissesse isso. Não percebíamos o que se passava na sua cabeça para colocar a hipótese de já ter morrido. Uma vez também perguntou se estava dentro do caixão. Muitas vezes não sabia onde estava e dizia que queria ir para casa. E, estando acamado, frequentemente, enquanto falava, gritava que a minha mãe ou a senhora que a ajudava se despachassem, dizia que queria ir para a cama para dormir. As vezes que dizia que queria morrer não têm conta. Muitas vezes, quando eu chegava perto dele e lhe perguntava 'Então, pai, como está?' ele respondia -- por fim, com a voz quase impossível de se perceber -- 'Quero morrer'. 'Que coisa, pai, não diga isso'. Mas percebia muito bem esse seu desabafo ou esse seu apelo. A degradação do seu estado físico foi progressiva, lenta, dolorosa. Uma pessoa antes com tanta vitalidade e tão orgulhosa ficou totalmente à mercê de outros: tinha que ser levantado, lavado, alimentado, aspirado. Não sei no que pensava quando estava mais lúcido. Sabemos, isso sim, que manteve até ao fim, pelo menos enquanto conseguia exprimir-se e salvo horríveis lapsos como os que acima referi, uma memória surpreendente. Mas parece que apenas reagia se chamássemos por ele e lhe fizéssemos perguntas. Senão, mantinha-se ausente.

Quando morreu, no meu íntimo, senti que o meu pai tinha, enfim, descansado, que não merecia ter sofrido tanto. O que senti como injusto foi o avc que teve há doze anos e o lento declínio a que assistiu aprisionado no seu corpo. Lembro-me de a minha mãe ter dito, no dia em que teve o avc, como um profundo lamento: 'acabou-se...'. E, quando lhe perguntei ao que é que tinha acabado, esclareceu: 'a vida que tínhamos'. A minha avó materna tinha morrido pouco antes e, finalmente sem encargos nem preocupações, os planos deles eram passear mais, iam de férias para o algarve no verão, iam para as beiras na primavera, iam para perto de nós com maior frequência, estavam a imaginar uma vida de qualidade. E uma rasteira assim, indecente, roubou-lhes doze anos de vida. Quando alguém sofre um tal sofrimento, é toda a família que o sofre, em especial os que lhe estão mais próximos.

Enfim. 

Moral da história: não guardar para depois o que agora pode acontecer mas amanhã não sabemos. Não guardar decisões, palavras, afectos. Se podemos fazer ou dizer hoje, é hoje mesmo que o deveremos fazer ou dizer. Quanto ao que vai acontecer amanhã, isso nunca o sabemos. Amanhã pode ser tarde de mais.

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Gosto do vídeo abaixo. Pensei dar o seu nome a este post, a thing about life. Mas seria pretensioso. Fica antes 'uma coisinha sobre a vida' porque não consigo falar sobre a Vida, a vida em geral, só o consigo sobre a vidinha, em especial sobre a minha já que é sobre ela que falo com maior à vontade, sem recear tocar em pontos alheios, pontos privados onde não tenho o direito de tocar.


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Um dia bom

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