terça-feira, dezembro 08, 2020

Mió ainda

 



Dia que pareceu suspenso no ar. Foi daqueles dias que é e não é. Precisava de fazer uma compra mas não sabia se podia circular, se o comércio estava aberto. Desatenta, certamente. Uns lugares saíram de muito elevado, não sabia bem quais. Fomos à hora de almoço, meia compra feita. De qualquer modo, dia de trabalho. 

Mas frio, muita humidade, escuro a meio da tarde. Esta terça-feira, dia feriado. Ainda há menos de um ano, dia de folga era dia de passeio ou de encontro. Agora é dia de recolhimento e ainda não aprendemos a viver assim. Sobra tempo mas não sabemos bem o que fazer com ele porque não podemos usá-lo como quereríamos. 

De tarde, lareira acesa. A trabalhar na mesa redonda junto ao calor. Acabou a faena já estava muito escuro e frio para ir passear no jardim. Fui buscar um livro e estive a ler ali mesmo. Uma estreia. Gosto de ler reclinada, não sentada numa cadeira. Mas, à lareira, estava-se bem. Podia ter ido para o lado de lá, sentar-me num cadeirão. Mas achei que não valia a pena. Fiz chá de erva-príncipe e gengibre, fui lendo e bebendo. Uma novidade, isto. Bem me soube.

Depois fui ver as notícias. Mas ando enjoada, niquenta: nada me interessa por aí além. Aquilo que sei que deveria dizer é de tal forma incómodo (sobretudo para mim própria) que ando a evitá-lo há meses. Tem a ver com a morte de Ihor Homenyuk no aeroporto de Lisboa. Não gosto de falar do que não sei. Mas fosse o que fosse que tivesse provocado tal sanha por parte dos inspectores e fosse o que fosse que os levou a todos a encobrir o caso, pelo menos com os contornos que parece ter tido, uma coisa parece inegável: é indesculpável que agentes da autoridade agridam alguém até à morte, deixando-o a agonizar, sem tratamento ou suporte de vida. Acho tudo o que se vai conhecendo de uma tal barbaridade que não compreendo como não houve uma investigação célere e exaustiva para que já houvesse acusados e para que já tivessem sido retiradas conclusões políticas. Seria bom que fosse público o que ali se passou naquele dia trágico para um homem que, ao que parece, vinha em busca de uma vida melhor; e seria bom que também se conhecesse quais os procedimentos habituais para averiguações do SEF no aeroporto e quais os mecanismos de controlo para que nunca mais haja lugar a situações de violência e encobrimento como as que envolveram o espancamento até à morte de Ihor. Também me parece que seria bom que tivéssemos todos conhecimento dos exames psicológicos a que os agentes de autoridade são geralmente sujeitos bem como qual o controlo de despiste de consumo de álcool ou drogas que lhes é feito.

A bem da transparência e da confiança da população nas autoridades, tudo isto deveria ser claramente exposto.

Mas, enfim, tema de tal gravidade não pode ser falado en passant e, por isso, prefiro nada dizer. 

Continuo, então, onde estava: no meu livro. Um livrinho pequenino. Manuscritos de Felipa. No outro dia, quando o folheei estava com aquela alta expectativa que sempre sinto em relação a Adélia Prado e, não tendo sido atingida por um raio de luz ao abri-lo, logo me assustei perante a perspectiva de que, desta vez, talvez fosse decepcionar-me.

Mas não: há na escrita de Adélia Prado uma irreverência, uma subversão, uma brincadeira, uma graça e, ao mesmo tempo, uma tal ida ao miolo que não consigo nunca ficar-lhe indiferente. Pelo contrário, espanto-me. Mas é um espanto agradado, uma vontade de perceber como se consegue cerzir de forma tão criativa palavras normalmente dadas a outras companhias.

Não é fácil transcrever excertos pois perde a graça se descontextualizado. Há ali uma dança em que cada passo faz parte da coreografia. Não dá para amputar o pas-de-deux, não dá para retirar o voo, a graciosidade do movimento, a amplitude do salto. Mas, ainda assim, arrisco. Um petit amuse-bouche.

Teodoro atende o telefone e pelo jeito a Angelina acabou de morrer. Me dá a notícia no tom em que toda a notícia assim deveria ser dada: olha, a Angelina terminou o serviço dela, tomou banho e voltou para casa dos pais, foi de primeira classe. (...)

Acordei ótima, sem estranhar o mundo, nos eixos. Eixo é uma palavra perfeita, não propriamente bonita, mas como palavra é sentido, esta tem apenas o que chamaríamos beleza interior, consolo dado a mulheres feias e bondosas, ideia e consolo enganosos, porque beleza radia e o que radia radia para fora, ou estou delirando? Vou acabar descobrindo que eixo é uma palavra bonita por dentro e por fora? Azeite. Vou pensar muito não, pra não gerar confusão. 

Estou no eixo, isto é, funcionando sem estranhezas para alegria ou tristeza, rima e solução; mais ou menos no 'tanto faz' daqueles santos meio estranhos, esquisitos e inteiros como o macaco da historinha que acharam felicíssimo em seu galho:

-- Macaco, sua mãe morreu.

-- Ah, é? Mió.

-- É mentira, macaco.

-- Mió ainda.

Se minha mãe morrer vou ter escrúpulos de falar: melhor, ou melhor ainda, porque não sou perfeita, não sei conversar sem adjectivos, ainda não sou essencial. (...)

E é isto. Um prazer. A vida pode ser uma coisa simples. Basta não complicar. Mas não é fácil. Descomplicar é como desajectivar. A gente quer, quer, mas, mal se distrai, já está a acrescentar adjectivo ou complicação. Ou as duas coisas ao mesmo tempo que é ainda pior.

Talvez por isso, quando passei para o YouTube, o meu amigo algoritmo, adivinhando que ando a complicar o que é simples, avançou com uns vídeos que me prenderam do princípio ao fim. Cada um com uns vinte e poucos minutos. Ou seja, ao todo, para mais de uma hora de coisa boa. Ainda por cima, uma hora falada em francês -- que é língua que me agrada por demais, civilizada, elegante, cheia de convite para viver bem -- e com música suave em fundo. Caso não saibam francês, não faz mal. São vídeos bonitos de ver. Três casos de saber viver bem. E se vocês já têm uma vida assim, simples e boa, mió ainda.

Sylvie Ramu, sculptrice et femme de cœur dans son petit paradis 


La folle vie d’un aventurier philosophe de 95 ans - Paul Du Marchie


Les merveilles d'une créatrice de papier, Viviane Fontaine

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Pinturas de Oscar Howe ao som de Farewll, Angelina segundo Joan Baez
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Até aqui, no post, não entrou a palavra Natal mas não faz mal: entrou agora e está bem assim. Se gostaram destes vídeos façam de conta que são três presentes que aqui vos ofereço

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3 comentários:

  1. Adorei ver o filme do filósofo! Já o vi duas vezes! Admirável!
    Com sua licença, vou colocá-lo no meu blogue!
    Obrigada.
    Beijinhos e bom fim-de-semana:))

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  2. Olá Isabel,

    Claro que tem toda a minha licença, ora essa!

    (Será que no post que escrevi hoje estou na dose certa de percentagens a seu gosto...? :))
    Um bom domingo.

    Beijinhos, Chabeli!

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  3. Ah!Ah!Ah! Não sei...vou ler a seguir...mas de certeza que sim!

    Obrigada pelo video. Atrás desse apareceram-me outros, todos, fantásticas lições de vida. Não sei se são do mesmo site deste, mas hei-de colocar alguns no blogue, pois têm uma filosofia de vida que me agrada cada vez mais e que gostaria de saber seguir/ser.

    Beijinhos e boa semana:))

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