Talvez haja quem pense que se escolhe. Não, não se escolhe. Os grandes, grandes amores não se escolhem. Os grandes amores não aparecem quando se procura. Nem aparecem quando se precisa. Não. Os grandes, grandes amores aparecem quando não se espera, sem aviso prévio. Aparecem muitos vezes quando e como não devem. Não obedecem a um cahier des charges.
Depois de ter passado pelo que já passei, tantos sonhos frustrados, tanta indiferença sentida na pele, tanto abandono quando mais sentia necessidade de um abraço, tudo o que não precisava era dele.
Nos últimos anos, tantas ilusões caídas por terra, tantas noites de solidão e intranquilidade. Eu e a gata, duas tristes, ela rondando pela casa ou dormindo horas a fio no cadeirão aqui em frente, eu rondando pelo mundo em busca de uma possibilidade. Tantas horas, tantos dias, tantos meses. Tanto tempo que parece uma eternidade
Amigos e amigos. Centenas. Visto-me e arranjo-me e estico o braço e fotografo-me e, de volta, recebo sorrisos, corações, likes, elogios. Que estou linda, que as cores são lindas, que o cabelo está óptimo, que a gata é uma fofa, que não sabem qual a felina mais misteriosa, se eu, se ela, brincadeiras, trocadilhos e fúteis agrados. E quantas noites passadas nos chats desta vida, tantas vezes em que parece haver um caminho, almas gémeas, tantos gostos coincidentes, tantas vezes em que exclamamos que o mundo é pequeno, promissoras afinidades -- tantas ilusões que se alimentam de palavras, de equívocos, de meias verdades. E tantos blind dates, tantos jantares com homens aborrecidos, vazios, cheios de si próprios, inúteis. Tantas situações desagradáveis. Tantas vezes em que tentei, em que me esforcei por acreditar, em que me forcei a iludir-me, forjando um entusiasmo que, por dentro, não sentia. Tantas frustrações.
A gata vem, percebe-me os humores, olha-me com aqueles olhos que sentem antes de verem e eu desvio o olhar para que ela não testemunhe o que quero esconder.
Está a chegar o natal, esse dia horrível. Pode ser bom para quem tem famílias grandes, crianças. Mas é um horror para quem quase não tem família e, pior, para quem não se dá com os poucos que sobraram. Enquanto isso, ele lá vai estar numa casa cheia de enfeites de natal, bacalhau com todos, a trinchar um peru fumegante, e todos em volta da mesa, mulher, filhos, pais. Tinha-me dito que, por causa disto, não iam estar os irmãos, só eles e os pais. Um dos irmãos e família ficariam com a véspera e o outro com a noite do dia. Mas tinha-me garantido que na véspera à tarde viria cá a casa. Isto já há mais de um mês. Parece impossível mas há já mais de um mês que não o vejo. Estúpido. Mil vezes estúpido. Todos os dias a aguardar que haja tempo para uma visita, um telefonema, um gesto.
Não se escolhe, é o que tantas vezes digo.
Se, naquele dia, a minha mãe não tivesse tido que ir às urgências, se uma semana depois também não, se não tivesse sido ele das duas vezes, se não o tivesse visto uns dias depois na livraria, se... se... se aquele blusão de cabedal não lhe ficasse a matar, se aquela barba não o tornasse ainda mais irresistível, se o livro que tinha na mão não fosse tão inesperado que me tivesse impelido a dirigir-lhe a palavra... se... se... o café que logo ali tomámos, ele porque estava mesmo a precisar e eu porque parecia tomada por um absurdo coup de foudre, se... E se eu, tão louca, não tivesse dado o meu número e se ele não me tivesse ligado logo a seguir e se eu, sempre tão carente, não tivesse caído de quatro, caída, caída, feita parva, apaixonada, cheia de esperança... e se... e se....
Mas ele sempre tão carinhoso: quando eu lhe dizia que eu era a outra, a sem nome, a ela, a dizer-me que não, que eu não era a ela, era, sim, a mais bela. Era assim que me tratava, a mais bela. Fotografava-me e eu gostava que ele me fotografasse. Entregava-me à sua lente, ao seu olhar, ao seu corpo.
Até que isto começou, porcaria do corona, raios partam o corona, e aí tudo começou a complicar-se. Não tinha tempo, sempre ocupado, sempre a trabalhar, sempre a receber e a fazer chamadas, sempre em stress, sempre a fugir. Agora já nem sei o que existe, se é que ainda existe. Tento compreender, claro que sim, não sou estúpida. Mas, bolas, nunca como agora fui tanto a outra, a descartável, a que se sente um estorvo.
Ah... não se escolhe.
E agora, se ele está doente, em casa, como falar com ele...? Impossível. Nem para saber se está bem. Sei lá se a mulher está ao pé, sei lá.
Vai chegar o natal e vai ser o mais triste de todos. Não tenho dúvidas. Nem dúvidas, nem presentes, nem companhia, nem nada, nada. Nem ninguém para ver como a mais bela está elegante, bem penteada, cheirosa. Ah, se se pudesse escolher...
Marion Cotillard foi fotografada por Mikael Jansson e vem ao som de If you love me por Melody Gardot
Finalmente!
ResponderEliminarFinalmente um conto de Natal, um conto de Natal a cheirar a Natal. Sem pivete a Quaresma (excluindo, obviamente, o Senhor do embrulho que deixou a caixa do lado de fora porta)
E para abrilhantar este conto lindo, Vinicius está sorrindo:
“… Porque a vida só se dá
Pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou
Pra quem sofreu …”
https://www.youtube.com/watch?v=bcy8OaOicfY
SUBSCREVO!
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