Hoje não consegui ler. Tenho o livro ao meu lado mas ponho-me a ver televisão e o tempo vai passando. Primeiro vi a entrevista de Fátima Campos Ferreira a Lídia Jorge. Superei a aversão que tenho à forma como a Fátima Campos Ferreira fala -- quase como se estivesse a falar com crianças ou com atrasados mentais, a fazer perguntas parvas, frequentemente a apelar à lamechice -- só para ver e ouvir Lídia Jorge. Não é escritora de minha especial afeição mas acho uma certa graça à forma como ela fala do Algarve rural. Há ali raízes que mergulham num chão que também sinto como um pouco meu. Toda a minha família foi, até certa altura, algarvia. Todos os meus quatro avós são algarvios. Contudo, saíram de lá ainda muito jovens. Para os meus pais, o Algarve era apenas a terra dos seus pais, tios e avós. Para mim, o Algarve ainda é uma realidade familiar ainda mais distante. Contudo, quando ouço falar do Algarve penso sempre no que são os caminhos do acaso.
Do lado da minha avó paterna, foi o mesmo desinteresse: tinha herdado terrenos e casas. Desfez-se de tudo. Conheci apenas uma propriedade contígua a uma que tinha sido sua: era a casa de uma sua sobrinha, uma casa grande, um terreno imenso com alfarrobeiras, figueiras, amendoeiras, uma ribeira, animais. Eu gostava daquilo. Muito sol, muita liberdade. Campo, campo. O meu pai ficava doido com o que a mãe fazia, vendendo tudo por tuta e meia, grande parte das coisas a essa sobrinha de quem ela gostava muito. O meu pai achava a prima uma oportunista e a minha avó não gostava que ele falasse assim da prima. Essa prima tinha nome francês. Tinha nascido em França. Não sei que voltas deram os meus antepessados. Como o meu pai e o meu tio não queriam saber de contratar pessoal para apanhar e secar as alfarrobas, os figos ou para fazer azeite, a minha avó, sem os consultar, achava que não valia apena ter tudo aquilo. Com os terrenos a valorizarem-se exponencialmente, ela não queria saber disso.
No entanto, curiosamente, os meus avós maternos guardaram até ao fim da sua vida muitos hábitos da sua infância e adolescência algarvia. E falavam nesses tempos, uma ancestralidade que lhes ficou colada à pele.
Gostava de fazer cestos. Já o contei. Sei que me repito mas gosto de recordar esses gestos vagarosos em tardes que me pareciam eternas. Apanhava folhas que punha a secar e, depois, sentado num banco baixo, punha-se a entrançar aquelas folhas resistentes: baracinha. Penso tantas vezes: porque não consegui conservar nenhum desses cestos se gostava tanto deles? Ali ele punha a fruta ou os ovos que a minha avó ia buscar à capoeira. O meu pai não ligava nada àquilo, acho que nem olhava. A minha mãe também achava que aquelas cestinhas tinham algumas imperfeições. Eu não, eu adorava.
E, nesta mansidão, o tempo vai passando e eu aqui preguiçando.
Tirando isto, posso apenas acrescentar que ontem ao fim do dia colei aquela grande taça de cerâmica onde estava o aloé vera, que se partiu. Depois de muito procurar, descobri um tubo com alguma cola-tudo. Temi não ter trazido nenhum tubo da outra casa mas, surpreendentemente, encontrei um. Colei e depois atámos um arame fininho em volta do rebordo para ajudar a manter a coesão entre as partes. O meu marido acha isto uma coisa do além. Por ele, partiu-se, vai fora. Eu não. Acho aquele grande vaso uma peça mesmo bonita. Falei-lhe no kintsugi. Ele não sabia o que era e também não quis saber. Eu é que não tenho nenhuma tinta dourada, senão haveria de tornar o vaso ainda mais bonito.
Sempre me custou deitar fora coisas de que gosto. Se estão danificadas, penso que devo tentar recuperá-las e não desfazer-me delas. No fundo, tenho este meu lado zen. O meu avô paterno tinha traços orientais. Traços e atitude. Pescava nas horas vagas, cuidava da horta, fazia cestos, lia. Era uma pessoa calma, silenciosa. Nunca o vi gritar, nunca o vi exaltar-se. Entretinha-se com coisas simples. Eu gostava muito dele. De pequena até ele ser bem velhinho sempre tivemos um amor muito grande um pelo outro. Custou-me muito quando ele cegou. Sentia-se muito diminuído por não poder fazer nada do que gostava. Ninguém merece.
Pelo meio, trabalho, essencialmente reuniões, confecciono as refeições, faço uma caminhada, vejo as laranjas a crescerem nas árvores. O tempo precioso que antes gastava no trânsito agora uso desta forma. Podia usá-lo para conseguir deitar-me mais cedo... mas esqueçam, isto é genético: sou noctívaga, nada a fazer. E estou bem assim, obrigada.
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Despeço-me com um vídeo comovente que invadiu a comunicação social depois de ter invadido as redes sociais. Tocante. Marta Cinta, bailarina, doente com Alzheimer, recorda a dança ao ouvir o Lago dos Cisnes. Tão extraordinário, tão comovente. Que seres vulneráveis e indefesos somos.
Belas peças de cerâmica.
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