segunda-feira, outubro 12, 2020

Palavra de código: arroz de frango

 


O dia foi bom, bom, doce. Calorzinho bom, um solzinho suave. De manhã, para além de termos ido fazer as compras da semana e de termos feito dois transplantes de vasos, fomos caminhar na praia. Manhã de calor. O mar bonito, o areal imenso, o sol sereno. 

O nosso país é maravilhoso. Não sei como há quem, sem razão que o justifique, mostre desprezo por um bocado de terra e mar de tamanha beleza, falando com desprezo de Portugal e dos Portugueses. Custa-me muito isso. Não é justo. E mesmo as pessoas. Cada um de nós tem defeitos e virtudes, quem os não tem?, mas, globalmente, somos gente boa, boa onda, tranquila, com alguma sabedoria de vida. Claro que também alguma irresponsabilidade e inconsequência à mistura (mas há povos perfeitos? só se for no reino dos céus) mas não podemos esquecer-nos que somos um país que descobriu a liberdade há poucas décadas depois de viver outras tantas num buraco sombrio. E, antes disso, salvo um período de agitação política, éramos um país no canto do mundo e teremos que recuar muito para nos encontrarmos como aventureiros, visionários. Mas quem de nós ainda pensa nisso? A história do nosso país está fixada no nosso adn? Não faço ideia. Sei, sim, que somos gente de bem, gente que gosta de gostar, que gosta de acolher as diferenças, que gosta de perdoar e abraçar -- e mesmo aqueles de quem se guardam mágoas são respeitados e recebidos em paz. 
A minha mãe disse no outro dia que é muito dos caranguejos gostarem de alimentar os outros. Dos que conheço assim é. O meu pai sempre gostou de ter mesa farta e de receber a família. O meu filho é igual mas em mais larga escala. E eu é sempre no que penso. O meu marido chama-me sempre à atenção, agora ainda mais por causa da covid: que depois não me queixe de que estou cansada, de que vimos carregados do supermercado e é todo um protocolo para higienizar tudo para estar pronto a tempo e horas, que há que arrumar antes e depois e etc. Não quero saber. Nem penso nisso. Só tenho pena é que não tenham mais barriga pois, por mim, gostava era de ver toda a gente a comer ainda mais de gosto, a apreciar cada petisco. E gosto de os ter por perto, gosto de vê-los juntos, amigos. Esse é o maior sonho da minha vida, sempre foi.

E, portanto, à tarde, a casa cheia, a alegria à solta, os meus meninos queridos todos por aqui. Sempre na rua, no jardim, sempre a alguma distância, quase sempre todos de máscara. Os meninos ficam numa alegria, correm, brincam. Adoram-se. Formam um núcleo fortíssimo. 

Os crescidos conversam, aproveitam o sol que se esvai, a doçura da tarde, um outono que se deixa anoitecer cada vez mais cedo.

Desta vez os meninos arranjaram uma brincadeira nova. Meus queridos meninos, cada vez mais crescidos. Enquanto os adultos estavam no jardim do lado de trás da casa, eles montaram arraiais na parte da frente. 

Estranhando não sabermos o que andariam a tramar, fui por e apareci-lhes vinda de dentro de casa. Um deles gritou: 'Arroz de frango! Arroz de frango!' e logo todos se levantaram e me atacaram, uns com espadas de espuma, outros com outras armas. Uns gritavam: 'Segurança! Segurança!', outros simplesmente tentavam assustar-me. O bebé perfeitamente alinhado com os mais velhos. Aliás, nem é correcto ainda tratá-lo por bebé. Mas só aqui o faço. Ainda no outro dia me apareceu ao telefone identificando-se por nome próprio e apelido. Desatei a rir e disse-lhe: 'Senhor engenheiro!'. Do outro lado, uma gargalhada. Menino mais esperto. Mas, resumindo: fui escorraçada. Ainda consegui perguntar a um deles: 'Mas o que se passa aqui?'. Apressadamente, esclareceu-me: 'Temos um clube secreto'. Só depois de ter sido expulsa é que reparei que tinham levado para lá uma espreguiçadeira, um colchão de água de escorregar na relva e pareceu-me ver ainda outros objectos que não identifiquei.

Passado um bocado, intrigados, tentámos ir em volta mas logo se ouviu o grito 'Arroz de frango! Arroz de frango!' e logo uma brigada de cinco guerreiros armados com paus e espadas nos afastaram sob ameaças e gritos. Tinham posto uma corda a barrar o caminho e de tal forma vieram atiçados que recuámos.

Já antes tinha sido a hora do lanche. Este supermercado, já contei, tem pães de toda a espécie, uns com carnes, broa com chouriço, empadas. E pães de deus, croissants. E, se era para a desgraça, já que os sumos e os iogurtes eram light, até trouxemos pastéis de nata e bolinhos recheados com chocolate. Claro que também coloquei na mesa fruta, maçãs e uvas, mas, claro, não tiveram grande saída.

Gosto de os ver a olhar para a mesa e a gostarem de tudo, a quererem provar tudo, a pedirem um pouco de quase tudo.

E a minha nora trouxe acepipes que tinham sobrado do almoço, incluindo bolo de pêra feito por ela e arroz doce feito pela mãe, do melhor que há. Portanto, mesa com coisas para todos os gostos. Só me arrelia ter tanto apetite e tudo me engordar. A minha filha disse que eu gosto de tudo. Perguntou se há alguma coisa de que não goste. Não há. Gosto de tudo. Antes não gostava de vinho mas agora já gosto. A minha nora disse que o meu filho também é assim. Mas ele lembrou-se de cominhos. De facto, também não engraço muito com cominhos mas se for tempero subtil não faz mal. Acho que ele se lembrou de outra coisa relativamente à qual também concordei mas já não sei o que é. Basicamente, sou de boa boca. A minha filha não, há muitas coisas de que não gosta. Faz-me impressão pois fico sempre com a impressão de que é preconceito ou falta de disponibilidade para querer dar a oportunidade de apreciar e degustar. Mas cada um é como é. E em tudo há vantagens: ela é elegante e mantém o mesmo número de roupa de sempre e eu está bem, está.

Ou seja, estivemos na conversa em volta da mesa. Felizmente a mesa é grande e alonga-se e podemos espalhar-nos em sua volta. Antes que o tempo esfrie e que as chuvas venham e, também, antes que o alastrar da pandemia venha a impor maiores restrições, aproveito até à última gota de afecto cada instante na companhia daqueles que mais amo.

E vê-los juntos, bem dispostos, os meninos na brincadeira e nós rindo-nos com eles, enche-me de felicidade. 

No sábado estivemos com a minha mãe, não o grupo todo mas metade. Fomos passear, lanche no parque, todos também quase sempre de máscara. Os meninos queixam-se: andam de skate e trotinete, transpiram, têm calor e, portanto, sempre que podem e andam à larga, obviamente tiram a máscara. Mas quando se chegam perto dos avós ou da bisavó têm o cuidado de nos proteger, protegendo-se também. 

Tenho receio de que, com tantos meses sem abraçarem e beijarem os avós, acabem por se desabituar. O afecto requer cultivo atento e assíduo. Quando as manifestações de afecto se interrompem, parece que a espontaneidade se perde. Esta pandemia está a durar tempo demais e, pelo que se antevê, ainda teremos quase um ano disto pela frente. Tomara que seja menos, tomara que surja cura milagrosa que a torne uma brincadeira de crianças. Mas, enquanto isso, o tempo arrasta-se e a vida continua -- e os nossos hábitos vão forçosamente sofrendo alterações e, francamente, não sei se todas no melhor sentido. 

Mas, enfim, não dramatizemos que o tempo não está para frescuras.

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As imagens mostram pinturas de Seurat que vêm ao som de I'm a fool to want you numa interpretação conjugada entre Angelina Jordan e Billie Holiday. 

E, se me permitem, partilho convosco um daqueles vídeos de que gosto muito: não percebo o que ali se passa mas, independentemente disso, prendem-me. Não precisamos de perceber tudo para gostar. Há ali uma paz que me inspira e que me convoca para uma maior comunhão com a natureza.



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Uma boa semana. 
Uma boa segunda-feira. 
Saúde, sorte, ânimo.
A vida continua. Frágil e cheia de momentos de pura beleza e harmonia.

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