segunda-feira, setembro 14, 2020

Uma letter to you.
São letras mágicas





O meu dia foi bom: caminhada na praia, ida à outra casa buscar coisas, arrumar as coisas que vieram, lavar cortinados, depois pô-los de molho em água e um pouco de lixívia a ver se voltam à alvura inicial (coisa que a minha mãe, ao telefone, já me disse que tire daí o sentido). Coisas simples. Um dia descansado. O meu marido há bocado arreliou-se comigo quando lhe disse que não sabia porque é que ele estava cansado porque o dia tinha sido tão descansado. Lembrou-me que carregou com sacos pesados, pregou coisas nas paredes, um dos quais um armário pesado. Mas isso já me parece coisa ligeira quando comparado com o que foram as semanas da mudança. E eu para além de ter lavado e relavado pesados cortinados, carreguei-os para o estendal. Ah, e passei camisas a ferro. 
Há quanto tempo não o fazia? Meses. Gostei. Gosto de passar roupa a ferro. Quando era pequena, lembro-me bem de pedir à minha avó que me deixasse passar alguma roupa a ferro. Na altura os lenços de assoar eram de pano. O irmão mais novo do meu pai ainda vivia em casa dos pais. Não sei para que queria ele os lenços. Não tenho ideia de o ver andar sempre a assoar-se. Se calhar, era costume saírem de casa com um lenço de pano lavado todos os dias. Sei que a minha avó deixava que eu passasse a ferro os lenços do meu tio. Todas as semanas havia um montinho de lenços para o meu avô e outro para ele. Mas eu gostava era de passar os dele. Um algodão macio, fininho. Lembro-me muito bem de ir passear com ele e com a namorada que viria a tornar-se minha tia e de ele lhe mostrar o lenço para que ela visse como estava bem engomado. Ah, que orgulho senti. Como me senti agradecida. Ainda agora, quando o vejo, cada vez mais curvado, a pele cada vez mais enrugada, me lembro da sua gentileza, do seu afecto por mim.

E encontrei o livro que estava a ler, Narciso e Goldmund de Hermann Hesse. Não tive tempo para voltar a ele mas tenho agora tempo para transcrever algumas palavras (incluindo as 'palavras mágicas' que puxei para parte do título deste post). 
Naturezas como a tua, dotadas de uma sensibilidade forte e delicada, as pessoas dominadas pelos impulsos da alma, os sonhadores, poetas, amantes, são-nos quase sempre superiores, a nós, intelectuais focados no espírito. A vossa origem é materna. Viveis na plenitude, a vós foi-vos dada a força do amor e da capacidade da vivência. Nós, os intelectuais, embora possa por vezes parecer que quase sempre vos guiamos e governamos, não conhecemos a plenitude, vivemos na carência. A vós pertence-vos a pujança da vida, a seiva dos frutos, o jardim do amor, o belo território da arte. A vossa pátria é a terra, a nossa a ideia. O perigo para vós consiste em afogar-vos no mundo dos sentidos, para nós em sufocarmos no espaço rarefeito de ar. Tu és artista, eu sou pensador. Tu dormes no regaço da mãe, eu mantenho a minha vigília no deserto. Para mim brilha o Sol, para ti a Lua e as estrelas; tu sonhas com raparigas, eu com rapazes...
Mais do que no mundo real, vivia naquele mundo dos sonhos. O mundo real, a sala de aulas, a cerca do convento, a biblioteca, o dormitório e a capela eram só superfície, uma ténue membrana vibrando sobre um mundo de imagens surreais alimentadas pelos sonhos. Um nada bastava para perfurar essa fina membrana: algo sugestivo, intuído na sonoridade de um vocábulo grego no decorrer de uma vulgar lição, uma fragrância saída do herbário do padre Anselm, a visão de uma grinalda de folhas de pedra que brotava do alto de uma coluna que sustentava o arco de uma janela -- pequenos estímulos que bastavam para rasgar a membrana da realidade e desencadear, por detrás daquela amena e árida realidade, a erupção dos abismos fragorosos, das caudalosas torrentes e vias lácteas do mundo imagético da alma. 
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Rogier van der Weyden está aqui por tão bem pintar retratos de mulher. 
Bruce Springsteen está aqui porque, ao contrário de muitos outros, sabe escrever uma Letter to you 

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A todos desejo dias felizes

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