quinta-feira, setembro 10, 2020

Traz-me a verde eternidade, não prodígios




Como estou em silêncio sob o alpendre, trabalhando sozinha e rodeada de buganvílias em flor, não incomodo os pássaros. Andam por ali em total liberdade. De vez em quando ouço barulhos quase estranhos que me levam a levantar-me, em silêncio, e ir tentar descobrir. Vem das árvores. Numa das vezes, um pássaro levantou-se, precipitadamente. Parecia que ouvia bater, uma pancada seca e repetida no chão e, afinal, era um pássaro. Se calhar terei que arranjar uns binóculos para tentar aprender a sua actividade.

Fui até lá ao fundo. As bananas estavam maduras. São muito estranhas, nunca vi bananas assim. O meu marido dizia que deviam ser bananas-pão, que não se comiam cruas. Apalpei-as, vi que estavam amolecidas. Como estava sem ter quem me refreasse, arrisquei. Doce, doce, doce. Um pudim macio. Apanhei as outras três. Já comi outra. O meu marido, desconfiado, não quis. Não sabe o que perde.

Coloquei num vaso o caroço de uma pêra-abacate que a minha mãe me deu. A ver se desponta. Se rebentar, transplanto-o e coloco na terra. A minha mãe diz que a vizinha tem uma no quintal e que cresce muito e dá abacates que é um gosto. Gosto de abacate macia misturada com kefir, canela, cajus, arandos, um fio de mel. No outro dia, a minha filha trouxe-me um boião com pólen de abelhas, em grão. Agora misturo-o no kefir da manhã e aquele crocante dá uma graça suplementar à papinha fresca e gostosa com que começo o dia.

Ao fim da tarde, voltámos a ir fazer uma caminhada na praia. O mar estava tranquilíssimo. A brisa mais do que fresca estava perfumada, uma maresia doce, dourada, serena. Andavam pequenos gaivotinhos a brincar na rebentação tranquila da água. Tinha levado a máquina mas sem cartão, não consegui registar o momento. A ver se amanhã conseguimos lá voltar.

De regresso, vim regar a zona da relva a que os jactos da rega automática não chegam. Tem que se arranjar aqueles aspersores. Mas gosto de regar. Reguei também os vasos. O meu marido foi regar a horta. 

Para o jantar fiz lombos de salmão, que é coisa rápida e fácil de fazer.

Fiz assim: fui apanhar duas grandes goiabas.
(A anterior proprietária disse que eram goiabas. Continuo a achar que são marmelos. Grandes, mal cabem numa mão)
Num tabuleiro coloquei azeite, uma cebola às rodelas, os marmelos às fatias, dois tomates em metades e, por cima, os lombos de salmão. Temperei com sal. Reguei com azeite. Antes tinha aquecido o forno. Quanto o tabuleiro entrou, baixei para os 180º. Ao mesmo tempo pus no fogão, a cozer, feijão verde, batata normal e batata doce cor-de-laranja. Quando estavam cozidos, deixei ficar o feijão verde para o comermos assim mas juntei as batatas ao tabuleiro, temperei tudo com um pouco de orégãos e reguei com outro fio de azeite.

Quando tudo estava dourado e um cheirinho saboroso tinha invadido a cozinha, o processo culinário foi dado por concluído e passou-se à fase da manducação.

Mais tarde, voltei onde sempre volto: ao meu ninho. Entre almofadas macias, descanso o corpo. Ouço música. Descanso a cabeça.

Não contei ainda que, à hora de almoço e ao fim da tarde, regressei ao livro. Acabei-o, claro. Não consegui estendê-lo por mais tempo.
Dizia que o escritor não devia ter a indelicadeza de surpreender o leitor. Procurava na literatura conclusões que fossem ao mesmo tempo surpreendentes e óbvias. Lembrando que Ulisses, cansado de prodígios, chorou de amor ao ver a sua verde Ítaca, concluía: "A arte deve ser como Ítaca: de verde eternidade, não de prodígios".
(...) 
Gostava de metáforas antigas -- o tempo como um rio, a vida como uma viagem e um combate --, e esse combate e essa viagem terminaram para ele, e o rio arrastou consigo todas as coisas daqueles serões, excepto a literatura, que (teria dito Borges, citando Verlaine) é o que fica depois de o essencial, sempre inacessível às palavras, se pronunciar.
Amanhã retomarei o Narciso e Goldmund. Imersa em verde, no meio de flores e do canto dos pássaros, depois de reuniões e outros compromissos, entrarei num outro mundo.

Tempos de paz, tempos de felicidade. Tantos passos a gente vai dando e, de repente, parece que todos os passos existiram para aqui chegar. Claro que há ainda algumas pontas soltas, algumas partes por desbravar, caminhos dúbios, labirintos, poemas para ouvir, páginas por ler. Mal fora se assim não fosse, significaria que tinha chegado ao fim da minha viagem. Ora não, espero ter ainda muitas dúvidas para esclarecer, muitos conhecimentos para adquirir, muitas lutas por travar. Mas a todos os esconderijos e caminhos ínvios a luz há-de chegar e muito haverá ainda por festejar.

__________________________________________________

_________________________________________________

Fotografias de Tina Modotti com acompanhamento de Melody Gardot em So we meet again
De novo, excertos de Com Borges de Alberto Manguel
__________________________________________________

Saúde, boa sorte, boa disposição.
Be happy.

Sem comentários:

Enviar um comentário