quarta-feira, julho 22, 2020

Casas.
As minhas. As dos outros. As vossas.





Depois de me ter casado, já vivi em quatro casas. Uma é esta em que estou, no campo, uma casa que, depois de muito procurarmos, descobrimos no meio do nada e pela qual todos nos apaixonámos imediatamente. As outras são casas de cidade. A primeira era um pequeno ninho no alto muito alto de uma muito alta torre, um apartamento dentro do céu de onde se via Lisboa de ponta a ponta e a margem sul também de ponta a ponta. Quando nasceu a minha filha não apenas a casa se tornou pequena como eu temia que ela, ao começar a andar, algum dia se aventurasse mais do que devia e sofria vertigens e pavores só de pensar nisso. Saímos de lá para uma casa mais espaçosa, que compensava a falta de boa vista com o facto de ser bem situada e de ter uma arquitectura acolhedora. Até que os livros começaram a transbordar sem terem para onde. Já não havia onde colocar mais estantes e não houve como não procurar uma casa maior. Aquela em que agora vivemos pareceu caída do céu. Ampla, com uma vista fantástica, cheia de luz, com uma distribuição harmoniosa. Os meus filhos eram adolescentes, tínhamos coonosco a nossa querida cãzinha. Uma casa à nossa medida.

Apesar de eu ser grande admiradora de arquitectura e apesar de haver arquitectos na família, apesar de eu própria não me importar nada de ter sido arquitecta, nunca comprar um terreno e, como num projecto greenfield, conceber e construir de raiz foi opção. Também nunca nos sentimos atraídos por casas novas, acabadas de construir. 

As razões dele eu não sei, nunca falámos sobre isso, mas as minhas eu sei. Gosto de sentir nas casas a vida dos que nos precederam, dá ideia que me faz mais sentido dar continuidade à ideia que outros, antes de mim, tiveram. Gosto, em especial, de casas com um cunho muito pessoal, porventura reabilitadas, acrescentadas. Esta em que agora estou tem uma parte com centenas de anos. Gosto de pensar em toda a gente que, ao longo de séculos, por aqui passou. Paredes com quase dois metros de espessura, feitas de pedras, grandes pedras. Depois o anterior dono concebeu a sua ampliação, construíu-a quase com as suas próprias mãos. Foi tudo feito com projecto aprovado e vistoriado pela Câmara mas foi numa altura em que os projectos não tinham que ser feitos por arquitectos. Foi ele que a imaginou e, com a ajuda de um engenheiro civil, converteu as suas ideias em projecto. Contudo, a mulher nunca se habituou a viver no campo. Ele gostava de ir melhorando a casa, tinha sempre o que fazer, fez armários, forrou um tecto a madeira. E ela odiava. Sentia-se presa, queria era viver na cidade. Os vizinhos contaram-nos que ela, por vezes, saía a correr e que ele ia a correr e a chamar por ela, buscá-la. Tinha o mesmo nome que eu. Até que se separaram. E ele teve tamanho desgosto que pôs a casa à venda.

Deixou cá tudo: mobílias, louças, bibelots. Acho que só roupas é que não. Mudei o lugar de tudo, escondi algumas coisas mas creio que não deitei nada fora. Durante anos, dormíamos no quarto mobilado por eles. Disfarcei algumas coisas, mudei de candeeiros, coloquei um espelho que arranjei num antiquário. Mas era o quarto deles. Essa mobília agora está no estúdio. O candeeiro da sala de jantar e o da cozinha ainda são os deles bem como a mesa e as cadeiras da cozinha bem como a mobília da sala de jantar.

A casa da cidade em que agora vivo foi uma coisa também assim. O dono gostava muito da casa. Tinha sido ele, enquanto jovem engenheiro, que tinha colaborado na construção do prédio e o último piso foi logo preparado para si já que o pai era o construtor. Mas separou-se e a mulher seguinte não queria viver na casa onde ele tinha sido feliz com outra mulher. Então ele pensou remodelar a casa de alto a baixo a ver se a convencia. Tudo novo. Mas a mulher não queria nem escolher acabamentos nem dar ideias quanto à remodelação e ele, certamente para a pressionar, pôs a casa à venda. Foi aí que soube dessa casa, por mero acaso. Ele dizia que não queria vender a casa mas deixava-me escolher todos os acabamentos, sem qualquer restrição de valor, tudo totalmente a meu gosto mas sempre na esperança que a mulher retrocedesse e aceitasse lá ficar. Quando percebeu que a decisão da mulher era definitiva, decidiu-se a vender. No dia da escritura estava inconsolável, chorou. A mulher disse-nos que ele não se conformava e que a filha também não, gostavam os dois muito daquela casa mas que ela era incapaz de ir começar uma vida ao lado de alguém numa casa tão cheia de memórias para ele, memórias das quais ela não fazia parte. Contou que estava grávida. 

E eu gosto de estar em casas que foram tão amadas por quem lá viveu, que foram imaginadas nos mínimos detalhes. E penso agora quer na da cidade mas, também, nesta aqui no campo, in heaven. Parece-me que me sinto herdeira de alguém que deixa um testemunho, alguém que sonhou, imaginou, se sentiu emocionado a ir para lá viver, que lá teve as suas múltiplas vivências.

No decurso dos processos de escolha de uma casa, vêem-se muitas casas alheias. Uma pessoa pasma com muito do que vê. De forma geral, a ideia com que fico é que a maior parte das casas são feias ou porque são fechadas sobre si próprias, ou têm pouca luz ou, então, porque têm decoração escura, ensimesmada, triste. 

Há excepções. Há tempos vi uma casa extraordinária: muito ampla, paredes quase todas de vidro, clarabóias, vários níveis acompanhando o desnivelamento natural do terreno, um corredor do qual se viam dois níveis abaixo e de onde se subia para dois níveis acima, cada nível separado do seguinte por meia dúzia de degraus. Casa magnífica. Um mobiliário minimalista mas de boa qualidade, uma mesa e umas cadeiras de extraordinária qualidade e design. Não estava à venda. E era uma magnífica excepção. 

Há um outro aspecto a referir: as casas das pessoas conhecidas, família ou amigos. Nessas eu não gostaria de viver e, de resto, fazem-me alguma impressão pois é como se detectasse ali sinais da sua intimidade. A casa das pessoas espelha a alma de quem lá vive. Pode ser árida, triste, banal, desconsolada, uma casa à espera de ser habitada. Ou requintada, reveladora em pequenos apontamentos, acolhedora, vibrante.

E, talvez por tudo isto, gosto imenso de ver casas - dantes era através de revistas de decoração, agora é através de vídeos. Gosto muito. Não me canso. Inspiram-me.

Se eu tivesse aptidão para escrever poesia, escrevia poemas sobre a casa. A minha. A primeira de que me lembro, a dos meus pais antes de terem construído a que viria a ser a sua casa, uma casa de que me lembro estranhamente bem, depois a actual, a casa onde fui criança, depois adolescente, onde levei os meus namorados, onde me casei e onde a minha mãe agora vive sozinha. As minhas casas, mesmo minhas, onde foram feitos e cresceram os meus filhos, onde eles viveram até irem construir as suas vidas, onde agora regressam com os seus próprios filhos. A que nos envolve e traz cá para fora o que temos de melhor. A casa que, um dia, será a nossa última. E a casa dos outros. As casas de quem me lê, as vossas casas. As casas que vos acolhem. E esta minha casa, esta vossa casa.

-----------------------------------------------------------------------------

E deixem que partilhe dois vídeos dos vários que estive a ver






--------------------------------------------------------------------

E um dia feliz para si que aí está desse lado.

Sem comentários:

Enviar um comentário