quarta-feira, maio 27, 2020

Elif e Sara, duas mulheres com quem gostava de conversar sobre o que deveria ser o mundo pós-corona





Há mais de dois meses que não compro inutilidades. As compras têm sido apenas as necessárias à subsistência alimentar e à higiene. Tudo o que eram desnecessidades foi esquecido. Se deixei de trazer para casa roupas, perfumes, brincos, pulseiras, tudo coisas de que agora não preciso e que eram apenas objectos que se acumulavam em casa e que iam circulando ociosamente sobre o meu corpo, a verdade é que esse meu desinteresse, aliado ao de muitas pessoas que, tal como eu, poderiam comprar mas não querem e somando-se à impossibilidade de pessoas que, mesmo que queiram, não podem fazê-lo faz com que o consumo baixe para níveis muito perigosos. Não são apenas os donos das lojas que ficam sem escoar os stocks, sem conseguir pagar a renda, sem conseguir pagar os ordenados dos empregados, são também os fabricantes dos produtos (e preocupam-me os fabricantes nacionais) e é tudo o que, em cadeia, corre o risco de, aos poucos, ir começando a desabar.


Mas não são apenas inutilidades que deixei de comprar: foram também livros. Nem sei quando voltarei a uma livraria. E nunca me habituei a encomendar. Tenho uma relação física com os livros. Aliás, se não sou dada a relações platónicas em geral porque haveria de ser platónica em relação a uma coisa de que gosto tanto como gosto de livros? Tantas vezes já aqui falei do prazer que era ir espreitar os livros, fazer-me rogada, fingir que não, olhar de longe como quem não quer comprar, depois, como quem não quer a coisa, ir ver por dentro, passar-lhes a mão pela capa, pelas páginas, tomar o pulso à paginação, ao formato e cor do papel e da escrita, sentir o cheiro, sentir o pulsar da palavra, depois abrir o coração, aos poucos deixar-me cativar, por fim sentir aquele arrepio que vem do coração até ao ventre, aquele prazer antecipado na posse, anda cá que vais ser meu, e ele já na mão, eu já a saber que não vou querer furtar-me, que vou pecar, uma vez mais, pecar.

Mas com estes meus pobres pecados pode o mundo bem. Mas e se mais pessoas estão como eu, sem comprar livros, interiorizando que há é que ler todos os que se têm e para os quais não tem havido tempo? E se as livrarias, em especial as ditas 'independentes', as de bairro, começam a não escoar stocks, a não pagar rendas, a não pagar a empregados? E se as editoras e as gráficas e os próprios escritores deixam de ter quem quem se lembre deles?

E atrás de tudo isto, no fim da linha, chegarão depois os 'danos colaterais': os empregados da limpeza, os de segurança, o enorme batalhão de invisíveis. 

De tudo há o verso e o reverso.


Consumismo é mau. Quebra no consumo -- sem actividades alternativas para absorver o buraco que irá formar-se na economia -- pode ser um pesadelo.

O regresso pós-confinamento e, em especial, pós pandemia deveria ser uma oportunidade a agarrar por todas as pessoas com cabeça. Desde os políticos aos empresários, dos agentes da cultura à academia e etc, toda a gente capaz de ver ao longe deveria pensar e perceber em que novos sectores se deveria apostar, de que forma deveríamos reorganizar as sociedades, como reorientar a formação académica, como passar a olhar para a sustentabilidade do planeta e da espécie humana.

Menos horas de trabalho, mais produção nacional de bens essenciais, mais turismo interno, mais actividades culturais, melhor aproveitamento do tempo de qualidade em contacto com a natureza, ocupação de tempos livres em actividades mais motivadoras, melhor distribuição territorial - não sei. Talvez tudo isto e muito mais. 


É o tempo da Europa se chegar à frente e mostrar como é relevante a história, o humanismo, o respeito pela ciência, pelas artes, pelo ambiente, pela democracia, pela liberdade, pela igualdade de oportunidades, pelo conhecimento -- e criar grandes programas de mudança. 

Países presididos por trogloditas ou por oligarcas ou por ditadores ou ávidos abutres ou sinistras hienas deveriam receber uma lição da Europa. Acho que este deveria ser o tempo dos grandes políticos, dos estrategas, dos bons visionários. E o tempo em que todos nós nos deveríamos elevar acima das intrigas quotidianas, acima da mediania, do diz-que-diz-que, da inveja que é coisa sempre tão medíocre, da falta da generosidade.


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Hoje esteve muito calor mas trabalhei tanto que mal consegui ir à rua. Só consegui por volta das oito da (quase) noite. A meio da tarde, entre duas reuniões, fui a correr (literalmente a correr) pôr um franguinho do campo a dourar no forno. A minha filha também todo o santo dia se debateu ao telefone e em videoconfs, tentando derrubar os escolhos com que se vai deparando no projecto com que estás prestes a arrancar. O meu marido impacienta-se ao telefone, ouço-o irritado, diz que 'aqueles gajos' e 'aquela gaja' não sabem o que andam a fazer. E, pelo meio, impacienta-se com o entra e sai dos netos que até já partiram o trinco da porta. Depois não quer que a porta fique aberta, diz que, se entrar alguma cobra ou algum rato, não venham chamá-lo para os apanhar, e vai fechá-la e, mal acaba de fazê-lo, já está alguém a abri-la. Ao fim da tarde, estava eu finalmente a ver os mails de trabalho, foi chamar-me: Vai lá ver, não param de comer, vai dizer-lhes que parem de comer que já está quase na hora de jantar. Perguntei-lhe: E então? E ele: Eh pah, ontem vim carregado de pão e estou a ver que já não chega a amanhã. E o tabuleiro de fruta já quase se foi. Assim é impossível assegurar alguma logística. Respondi: Só se for por isso da logística porque quanto a serem quase horas de jantar, isso não colhe. Podem comer agora duas sandes com azeite, tomate e orégãos e rematar com uma maçã e uma pêra que, vais ver, sentam-se à mesa e é como se não vissem comida há mais de uma semana. Portanto, fui ter com eles e perguntei: Então, meus amores, precisam de ajuda para mais um lanchinho? Disseram que não, que arranjam sozinhos, que o avô é que não percebe que eles estão sempre com fome. E o curioso é que não são gordos, nem um pouco. Mas também correm e saltam e brincam tanto que tudo o que comem se transforma na energia que os move. 


Agora que aqui estou, sozinha na sala, tarde e más horas como é costume, estive a ver os vídeos que o YouTube tem para me mostrar e este é, para mim, um momento de descanso, de descontração. Partilho dois que prenderam a minha atenção. Não sei quem é esta escritora nem esta pintora que aqui falam. Mas gostei de as ouvir e ver. Gosto de ouvir pessoas assim, que falam de coisas assim. Ao ouvir Elif, a escritora, lembrei-me o dia em que dei boleia a uma estrela em ascensão, uma mulher que meio mundo diz que é promissora, alguém que já começa a dar que falar. Às tantas diz-me ela: 'Ler, não leio, não gosto. Nem tenho tempo nem paciência'. Eu não queria acreditar no que ouvia. Perguntei: 'Mas nenhum? De nenhum género?' E ela, segura de si: 'Não, nenhum, tenho outros interesses'. Fiquei sem vontade de continuar a conversa, fiquei a achar que trazia um calhau louro com óculos ali ao meu lado. A partir daí, de cada vez que ouço gabar a sua inteligência e assertividade, encolho os ombros e esforço-me por fazer um esgar discreto mas não tão discreto que não percebam que aquela ali não me convence.


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E depois das recriações de pinturas célebres por parte de uma mulher que, durante o confinamento, se diverte a fotografa a sua mãe de 83 anos (que deve, igualmente, divertir-se à brava), aqui estão os dois vídeos de que acima falei. Gostei de ver, repito. Espero que também gostem.




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Saúde e love, meus Caros. 
E façam o favor de se portarem mal, está bem?

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