terça-feira, abril 21, 2020

Em tempos de Covid, carta de um médico aos velhos e vulneráveis





Quem acima se vê é um senhor do grupo de risco. Tem setenta e dois anos. É daquelas pessoas de quem temos que nos manter longe para não os infectarmos. É daqueles que integram o grupo dos que terão maiores probabilidades de morrer se forem infectados.

Nos primórdios da era pré-Covid eu dizia que tínhamos que nos preparar, aumentar a limpeza dos escritórios, tínhamos que nos distanciar, deixar de apertar a mão e dar beijinhos, preparar a ida para casa. A resposta que eu recebia era invariavelmente: 'Tem medo...? Eu não... Não faço parte dos grupos de risco...'. E gozavam comigo. Mulher. Medrosa. Fraquelas.

E, por todo o lado, eu ouvia, como se não houvesse motivo para a gente se ralar: 'Dá com força é nos velhos... Calma... Não é para ter medo....' E eu não apenas sabia que não era só nos velhos, era em quem calhava, como, ainda que fosse verdade, seria tão dramático como se desse só nas pessoas de cinquenta, só nas de quarenta. Que é isso de ser alívio dar nos velhos? Velho é gente --  e gente é gente é gente é gente.

Ainda agora, quando ouço algumas notícias, é com uma indisfarçada nota de alívio que se percebe que dizem que era velho, que quem mais morre são os velhos. E ainda me apercebo, no tom, que subliminarmente a mensagem é que, pleeeaaseee, não há crise, nada de alarme, isto é mal que dá é nos velhos. 

E as notícias vão-se sabendo. Velhos deixados ao abandono, lares cheios de velhos doentes, entregues à sua sorte. Velhos mortos, abandonados. Ouço e nem quero ouvir, leio e não quero ler. Os velhos somos nós se lá chegarmos. Nós os jovens e saudáveis, nós os que resistiremos de certeza ao covid, nós talvez um dia cheguemos a velhos e a ver se não acabamos num lar, rodeados de outros velhos, infectados e contagiosos, alguém de quem toda a gente quer fugir a sete pés, nós velhos, bons é para ir engrossar a estatística e deixar de chatear os jovens e saudáveis.

Eu, com a minha mãe, falo é nos nonagenários e centenários que saem de boa saúde do hospital. Uma que saíu a dizer que estava com fome. Outro que resistiu a guerras e agora a mais uma. Falo-lhe é de casos surpreendentes de bons. E sou sincera. Fico surpreendida, fico contente. Gente resistente é um hino à vida.

E fico varada, tenho que me conter para não mostrar a minha náusea sempre que ouço falar com displicência, sem compaixão ou solidariedade, em que 'isto é mau é para os velhos'. Não lhes passará pela cabeça a angústia que sentem as pessoas de idade ao ouvirem falar do fantasma malvado que anda de foice em punho à solta por aí? Não lhes ocorrerá o medo que isto lhes causa?

E depois há o lado dos médicos, enfermeiros e demais pessoal hospitalar... São gente de carne e osso e, por mais que tenham nervos de aço a lidar com a doença, com a dor e com a finitude da vida, são também confrontados com momentos difíceis sabendo que, por vezes, não há nada que possam fazer para salvar algumas vidas. Aliás: sabem. Sabem ser honestos, humanos, sabem aliviar o sofrimento físico, sabem tornar digna e não penosa a passagem para o outro lado.

O vídeo abaixo é duro de ouvir. Mas é um vídeo franco. Um vídeo humano, honesto e, apesar de tudo, revelando uma tocante sensibilidade. 




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Para desanuviar, uma outra carta, esta cheia de ironia sobre o que se pode esperar dos humanos. Deliciosa.

Stephen Fry reading a letter from E. B. White to a gloomy fan


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As imagens que aqui juntei claro que não têm nada a ver com nada disto. Talvez tentem, apenas, aligeirar o que não pode ser aligeirado. São fotografias que tentam glosar pinturas conhecidas e respondem a um desafio. A coisa pode ver-se no Bored Panda onde outras proezas do género podem ser vistas. Museums Ask People To Recreate Famous Paintings At Home, Get 30 More Hilarious Pics

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