domingo, março 01, 2020

Numa cabana sobre o rio, a ouvir a chuva





Foi por mero acaso. Era para ser noutro sítio, num lugar normal. Mas depois este tempo, de chuva, 
aí não, que graça tem?, não achas? 
acho, mas então onde?, aqui? 
aí acho que não, junto à praia com o tempo assim não tem grande jeito
pois, concordo, mas então onde?
não sei, não estou bem a ver
olha, e se for aqui? 
não sei, parece que também não me inspira, 
e assim, nesta hesitante preguiça, acabámos por pensar vir conhecer a região onde o meu filho tinha estado recentemente. Escolhemos um lugar que pareceu bonito, diferente. Cheio, excepto uma última cabana na encosta sobre o rio, desistência de última hora. Como uma casinha na árvore, mignonne como um ninho aconchegado. Um ninho feito de madeira, ainda com o perfume da madeira, confortável, pequenino e suficiente. Uma pequena cabana mergulhada na natureza.


Agora, enquanto escrevo, ouço a chuva a cair lá fora. Som tão bom. Ouço e é um som familiar, melhor: maternal, coisa do início dos tempos.

Tudo aqui está cheio de vida e de beleza. Fomos a pé até ao rio. As rochas estão molhadas, a terra está atapetada de musgo. Andámos no passadiço sobre as águas, vimos as margens férteis, as árvores inclinando-se, as folhagens tentadas, querendo ir a banhos. Tudo tão bonito, tão verde.


Vim com vários livros -- e, se agora não estivesse aqui tão quentinha, levantava-me e ia fotografá-los para vos mostrar -- mas, na estação de serviço, deu-me aquela vontade que me dá quando me cheira a férias e que antes me levava sempre a querer comprar uma revista e que agora, um pouco mais sensata, se ficou pelo Expresso. Mas ainda só li no carro pois aqui o tempo não tem chegado para desfrutar leituras. De tarde, fomos conhecer as redondezas e já tive uma agradável surpresa. A ver se ainda vos mostro. Ia à procura de uma terra soturna e austera (austera foi a minha filha que disse há pouco quando lhe contei da surpresa por ir a contar que a terra estivesse embrenhada em seco negrume e não me ocorria a palavra para o classificar). Que terra preciosa fui descobrir. Tenho mesmo que falar nela. 


Aqui ao meu lado um cavalheiro lê um livro. Como é usual, é um livro de História. Não sei porque escolheu uma área tão radicalmente oposta à História. Penso que um dia que tenha tempo para isso ainda irá dedicar-se mesmo à coisa. Estava tão absorto que nem deve ter reparado que o fotografei. Mas, para aqui mostrar, já lhe cortei um pedaço senão passava-se. Assim só se vê o livro que está a segurar. Não costumo estar na cama a escrever no computador enquanto ele lê. Agora também podia estar ali, na zona do sofá ou na secretária. Mas apetece-me estar aqui, quentinha. Ele, receando que estivesse frio, trouxe para dormir uma blusa fininha preta, creio que foi o meu filho que lhe deu quando ele fazia pilates ou lá o que era no ginásio. Agora aqui de tshirt preta e de óculos, coisa que só usa para ler, até me surpreendeu. Disse-lhe que só falta estar de gola alta para parecer o Sócrates. Ele olhou espantado, não percebeu. Acrescentei que aliás só falta também ter mais cabelo. E, pensando bem, acho que o Sócrates nem usa óculos. Se calhar, bem vistas as coisas, razão tem ele para não perceber.


Entretanto, o som da chuva abrandou e ouço agora também uma aragem mais forte. As árvores nuas estão lindas.

Há aqui umas que não sei o que são mas que dão umas coisas curiosas, nunca tinha visto. Ainda pensei que talvez fossem castanhas mas não, as castanhas vêm envoltas em ouricinhos. Lembrei-me da palavra bugalho e fui ver. Sim, é capaz de ser bugalho. Se calhar são carvalhos estas árvores.

Este planeta é uma gigante arca do tesouro a céu aberto. Maravilho-me com tudo isto que brota da terra, construções surpreendentes, infinitos milagres.


E o  mesmo sobre o meu país. Tão lindo. Gostava de chegar ao mapa e dividi-lo em quadrículas para, escrupulosamente, as conhecer bem uma a uma. Não deve haver bocadinho que não seja cheio de encantos. 

Bem.

Vou ver se leio um pouco mais e se depois ainda cá volto para um petit rien. Podia já tratar disso mas estou com vontade de ir ler ali umas coisas. Tenho pena que o Expresso, a nível de jornalismo político e/ou de actualidade, seja tão leviano, tão populista, por vezes tão torpemente vulgar. A primeira página deste sábado é apenas mais um exemplo disso, uma descontextualização infame do que Graça Freitas disse. Não posso pactuar com essa linha editorial e, de cada vez que constato que perderam completamente a vergonha, mais me convenço que não devo comprar o jornal. Mas a nível cultural continuo a encontrar múltiplos motivos de interesse. Há ali gente que, ano após ano, sustentadamente, mantém a qualidade na análise e na escrita, a elegância no uso da palavra, a frescura das ideias nascidas de novo. Quando os releio sinto prazer. Ler o que uma pessoa inteligente e culta escreve é estimulante. E, por eles, tenho muita pena de não poder acompanhá-los com a regularidade que mereciam.


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Do LS, Leitor que de vez em quando me oferece poemas, muitas vezes enviando-me também vídeos nos quais os poemas são lidos por si, recebi ontem dois. Cometo a ousadia de aqui transcrever um deles sem antes obter a sua autorização mas penso que ele perceberá que seria uma pena eu não os partilhar com todos os que por aqui me aturam.  E, LS, uma vez mais, agradeço a sua simpatia e generosidade.

A ânsia
a febre
a fome
no teu ventre se afundando
me consome;
um gesto de asas
preso na garganta,
os dias suspensos
de teus dedos,
os cabelos densos
de segredos...
Rios de desejo
correndo ao rés da pele
na superfície febril
dos teus braços...
A ânsia
a febre
a fome
ao ritmo dos teus passos
desvendando
lentamente
o mistério do teu nome.


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Agora que se sabe que o Luis Sepúlveda está infectado com o COVID-19 e que esteve em Portugal,  no Correntes d'Escritas, na Póvoa de Varzim,  sugiro a leitura que o João L. deixou, em comentário, no post abaixo: COVID-19—New Insights on a Rapidly Changing Epidemic

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E a todos desejo um bom domingo

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