Estou numa fase de pré-lançamento para ainda não sei exatamente o quê mas, como muitas vezes acontece, movimentando-me numa twilight zone enquanto, à vista desarmada, nada se passa. Não desgosto da clandestinidade. Há quem suspeite de que alguma coisa está para se passar e me ronde e vigie e me prense. Mas sou boa nisso, sou mestre em poker face: concluirão que no pasa nada. E eu, sabendo o que talvez se vá passar, forço-me a não pensar em nada para chegar ao momento que talvez esteja para chegar como se tivesse sido apanhada de certeza.
E, enquanto isso, muito trabalho e muita reunião e muito bau bau*. Ora acontece que, em momentos assim, a minha beleza implora por um break mental. Portanto, à hora de almoço, ala moça que se faz tarde e aí vai ela, toda flauteada, fazendo de conta que o tempo não está contado. Mentalmente o cilício de sempre, pregado à carne: não é para trazer nada, é só para ver.
Mas sei que é mais do que ver: é impregnar-me. Estar entre livros, ver o que há de novo, folhear, deslizar como uma gata por entre as letras é bálsamo, é fascínio, é vacina contra o que virá durante a tarde, é mel, é perfume, é bênção, é estar à janela a respirar ar puro e da janela ver o mundo.
Claro que quase tudo o que ali vejo me repele: desde os títulos dos livros, às respectivas capas, passando pelo nome daquela gente que vive de parir livros como quem faz estalar grãos de milho em sala de cinema. Passo ao largo tal como passo ao largo da fast food cujo cheiro enjoa. E penso que tanta tralha em forma de livro é bem capaz de ser mesmo mau para a cervical. É que eu posso passar ao largo mas há quem tenha que sacrificar o corpo vivendo entre aquilo.
Passo, pois, ao largo dos best sellers e, como sempre, busco as franjas, desloco-me pelas margens. Mas não é para trazer, é só para ver, vou repetindo.
Até que vi um livro de Paolo Cognetti. Tentação. Gosto tanto dele. Mas tentei resistir, encontrar pretexto para não sucumbrir: fui ver se o tradutor era o Pedro Tamen. Não era. Pensei: não vai ser a mesma coisa. Pedro Tamen sabe que a toada, o balanço e a poesia na fala são indispensáveis para a gente se apaixonar. Segui sem ele. Depois fui dar com um do Casimiro de Brito. Folheei. Gostei. Pensei: tem que ser, é só este.
Mas não foi só esse. Tive que trazer também o Paolo Cognetti.
Vim feliz. E a minha vontade era, a seguir, ir para o Jardim, deitar-me na relva ou sentar-me encostada a uma árvore, ouvir ao de leve a aragem a rumorejar por entre as ramagens das árvores e passar a tarde entregue a eles dois.
Mas o cilício não me martiriza apenas para me lembrar para não trazer livros, impele-me também a deixar de lado os desejados prazeres, indo enfiar-me num escritório mais do que prosaico.
Contudo, durante a tarde, de vez em quando, antecipava o prazer de, à noite, os ler, os ler mesmo que à minha maneira. No início das leituras sou aleatória, procuro a impressão. Sou impressionista. Depois, se me deixo tentar, sou devota.
À noite, ao chegar e ao estacionar o carro, peguei no computador, na capa de lã, na carteira e mais nem sei em quê e, estúpida, deixei o pacote de papel com os dois livros no carro. Quando dei por ela, já estava em casa, descalça, sem o traje de luces. Disse que ia ao carro buscá-los, mas tinha que ir vestir-me e calçar-me e o meu marido demoveu-me. E eu, preguiçosa, deixei-me demover. E agora, pobre de me, aqui estou, longe deles, em estado de carência.
E quem não perceber este amor por livros não percebe nada de mim. Se calhar nem conhece bem o que é gostar de livros. Ou mostra um supremo desconhecimento das coisas da vida. Ou nem sonha o que é uma mulher que ama livros. Isso, sim, é o mistério dos mistérios. Pior: o perigo dos perigos.
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Mais ou menos a propósito, partilho um vídeo com muitos livros dentro
Transcrevo: Antiquarian booksellers are part scholar, part detective and part businessperson, and their personalities and knowledge are as broad as the material they handle. They also play an underappreciated yet essential role in preserving history. THE BOOKSELLERS takes viewers inside their small but fascinating world, populated by an assortment of obsessives, intellects, eccentrics and dreamers.
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O acto de ler é já de si uma coisa saudável de se ver. Como algumas vezes vou de comboio de Cascais para Lisboa, visto, no meu caso, isso não me trazer problemas de maior – a viatura é útil noutras ocasiões –, já tenho observado que ainda há pessoas que a lerem. Trazem um livro consigo e preferem ir lendo em vez de estar agarradas a um TLM. E, curiosamente, muitos são pessoas jovens, elas e eles, embora também haja leitores de outras gerações. Todavia, a maioria, ou se entretém com o seu TLM, ou dorme, ou vai olhando em volta. Mas, é bom saber e ver que há quem continua a gostar de ler. E, nesse sentido, de comprar livros. Gosto de ver as pessoas a ter interesse em se informarem e sobretudo em adquirir conhecimentos e a cultivarem-se. É muito positivo. E também conheço pessoas para quem o acto de ler é algo impensável. Algo que as deixa indiferentes. Sobretudo gente com uma determinada preparação universitária. É algo que me choca, mas é lá com elas.
ResponderEliminarQuando vejo alguém a ler, em lugares públicos, num comboio, numa praia, num jardim, num avião, etc, fico satisfeito. Hábitos saudáveis. E ainda vai havendo. Vá lá, o Mundo não está perdido, como alguns auguram!
Deixo para o fim a interrogação sobre se as mulheres que gostam de ler são perigosas. Não, não são. Cultivam-se e nesse sentido os homens que não o fazem que se cuidem com elas. Conheço um casal assim. Uma relação estranha, que não entendo. Ela culta, lê muito, interessa-se, com quem se pode ter uma conversa interessante - e ele o oposto. Como é possível aqueles dois seres coexistirem é uma coisa que não consigo explicar e entender. Há, porém, alguns “exageros”, ou melhor, bizarrias. Tenho um amigo que tinha até há pouco tempo uma companheira, mulher interessante sobre todos os aspectos, que, segundo ele, mesmo na cama, entre as “manifestações” sexuais, gostava de teorizar, comentar e falar de questões intelectuais, “so to say”, que nada tinham a ver com aquele “particular momento”. Dizia-me ele com alguma graça: “meu caro, aquilo era conversa para me tirar a «ponta»”. Durou enquanto durou. Ela era encantadora, mas, pelos vistos, na minha humilde opinião, “não era capaz de focalizar-se naquilo que num determinado momento fazia”. Bom, dir-se-á, que ela tinha interesses que se sobrepunham a outros. Por exemplo, ler era mais importante do que o sexo. Pois!
(PS: se ao menos a conversa literária dela versasse, naqueles momentos, sobre o que o “Meu PiPi” teorizava, já seria mais compreensível. Mas não era o caso, infelizmente.)
Olá UJM,
ResponderEliminarHá dias lembrei- me que o meu marido me deu, pelo Natal, um cartão oferta de uma loja de roupa. Recuso me fazer compras de roupa pelo Natal e dois ou tres dias depois a mesma peça custar metade do preço. Guardei-o para os saldos ou mesmo para a nova colecção.
Esta semana, decidi ver as novidades da loja mas antes parei na Livraria ao lado e entrei. Esqueci que tinha o tempo contado e quando dei por mim tinha comprado dois livros. Um para mim e outro para a minha pitorra que adora "ler" historias aos bonecos e à mana mais velha. Lá ouvi o comentario: mas não vinhas comprar roupa? Não estás boa da cabeça.
Num destes sábados de manhã resolvemos ir até Lisboa passear, perdemo-nos os dois nos alfarrabistas.Acho que são um mundo e encontramos obras inesperadas, além de quadros, postais lindos que são bocados da historia de vidas já passadas. E os donos destas casas são gente interessante que ama livros e por vezes mostram-nos obras de que nunca se separarão. Recusam vendê-las. Lembrei-me do seu marido e do seu interesse por livros sobre a Historia de Portugal.
A propósito, não me lembro que a UJM tivesse alguma vez falado sobre alfarrabistas. Não os acha interessantes? Ou estou enganada?
Um beijinho e até sempre.
Sobre o (des)amor aos livros, ocorre-me um facto que vivi numa aldeia da Beira Alta, nos anos 80. A família de um médico, após a sua morte, vendeu a casa no concelho de Penalva do Castelo a um emigrante. A casa foi objeto de "recuperação". O granito, em algumas partes, deu lugar ao cimento, aos alumínios, a adega foi convertida em garagem, as madeiras antigas eram combustível para aquecimento da lancheira, etc. etc. Através de um familiar, tive conhecimento que existia uma grande biblioteca na casa, com livros de medicina, muitos dos quais da autoria do antigo proprietário. Informou-me esse familiar, que o empreiteiro (também meu familiar), no final do dia, para se ver livre dos livros, obrigava os trabalhadores a levarem um livro. Dizia-lhe ele: "Até pareces um estudante da universidade de Coimbra!". Quando tomei conhecimento do que se estava a passar, fui falar com o chefe da obra. Disse-me "Cum raio, já chegaste tarde! Saíram daqui uns valentes carros de bois de livros." Passei há dias por lá . A casa solarenga em granito, é hoje uma "maison".
ResponderEliminarOlá P,
ResponderEliminarQuem gosta de ler e gosta muito tem uma avidez por conhecer o pensamento dos outros, por beber parte do conhecimento que há para conhecer. Quando se vê um livro e se 'sente' que há ali palavras nunca antes ditas daquela forma ou saberes nunca antes antevistos, quem gosta de ler tem dificuldade em resistir. A atracção pela beleza ou pelo desconhecido é grande. Daí o ter vontade de ter livros.
Não é para exibir, é mesmo apenas para poder desfrutar a beleza das palavras ou para poder antever o que há para além do que se desconhece. É que uma coisa é certa, pelo menos para mim: pessoas, homens e mulheres que, por puro exibicionismo, desfiam citações ou evidenciam que já leram isto e aquilo, acabam por se tornar fastidiosos. Claro que outra coisa é a gente perceber que o fazem pelo gosto da partilha ou para ensinarem quem genuinamente gosta de aprender.
...e lá vou eu... Começo a falar de livros e não me calo...
Uma boa 6ª feira, P.!
Olá Pôr-do-Sol,
ResponderEliminarQuando eu andava a estudar, numa altura em que recebia mesada, poupava em tudo para poder ir para os alfarrabistas ali ao Chiado e era uma perdição.
Depois fui-me afastando. O papel fica amarelado, por vezes têm um certo cheiro a mofo. E, sobretudo, parece que ainda têm qualquer coisa do outro dono. Prefiro-os 'virgens', para os sentir como meus.
Mas se calhar são fases, pode ser que ainda me volte a interessar por livros usados. Mais recentemente, abri uma excepção: comprei alguns usados na Déjà Lu em Cascais, uma livraria gerida por voluntários em que os livros foram doados e em que o dinheiro que obtêm vai para uma Associação ligada à Trissomia 21. Se puder, dê lá um salto. Há livros bons a bom preço e a causa é meritória. E o lugar onde está é bonito. Aliás aquela zona da Cidadela e 'arredores' é toda muito bonita.
O meu marido, então, ainda é mais reticente que eu a livros usados. Como é muito sensível a cheiros, acha sempre que têm um cheiro alheio que lhe desagrada. E sim, gosta muito de História, de Portugal e não só. Sabe muito e não se cansa de aprender mais, mesmo que aparentemente sobre a mesma coisa.
Um beijinho Sol-Nascente. E bons passeios!
Olá Anónimo (P?),
ResponderEliminarAs bibliotecas que ficam sem dono dão-me muita pena. Custa-me conceber a ideia de que uma biblioteca, ser vivo e acarinhado, acaba ao abandono, os livros repartidos, dados, vendidos a peso, é uma ideia que me é dolorosa.
Quando olho os meus livros muitas vezes penso nisso. Tomara que nunca se vejam sem serem queridos.
Mas não se pode querer que o que nos pertence nos sobreviva intacto. Foi o que aconteceu a essa maison. É a vida, como dizia o outro, não é?
Agora definitivamente em Portugal devido a um acontecimento na minha visa, muito grave.Nunca deixei de ler o blog mais belo de Portugal, pena não poder aceder no FACEBOOK. para espalhar a boa nova da inteligência. Obrigada e até sempre.
ResponderEliminarOlá UJM,
ResponderEliminarNão essa das bibliotecas que ficam sem dono não foi da minha autoria.
Bom fim de semana!
P.