Se há coisa de que não gosto é de andar a conduzir à noite por sítios que desconheço nos arredores nem sei bem dizer de onde. Pelo nome do lugar não faria ideia de como lá chegar. Portanto, pego nas coordenadas e coloco-as no navegador do carro e vou seguindo as instruções. O pior é aquilo mandar-me para onde não faço ideia, dizer para eu virar à esquerda e não haver esquerda para onde virar, falar na quarta saída da rotunda e só haver três saídas e eu ficar sem perceber se o gps está errado, se fui eu que descarrilei nem sei onde ou se está mesmo a mandar-me para o outro lado do mundo. Ainda por cima, parte das estradas naqueles arrabaldes não têm marcação e eu nem sei se é sentido único ou duas faixas ou se não percebi bem as instruções e vou é em sentido contrário. Ou seja: um sacrifício.
Quando perguntei "mas com que jeito é que escolheram uma coisa num lugar tão ermo? E no início de Dezembro... tão longe do Natal?" explicaram-me que com a lotação pretendida, para ser equidistante dos que trabalham aqui, dos que trabalham ali e dos que acolá e para ser numa sexta-feira ao jantar só se se tinha arranjado ali e nesta data. Pronto. I rest my case.
Mas, portanto, para mim, dar com um lugar fora de mão, desconhecido e à noite, é das coisas que não me agrada. Felizmente lá dei com aquilo embora mesmo em cima da hora, o parque já a transbordar com centenas de carros já por todo o lado. Quando estava a estacionar, estacionou um carrão ao meu lado. Quando saí, pergunta-me o homem, ainda dentro do carro, com um sotaque estrangeiro, se era ali o jantar da empresa tal e coisa. Disse-lhe que sim. Então ele, muito admirado, perguntou-me se eu ia para lá. Disse-lhe que sim. Admirado perguntou se eu trabalhava lá. Disse-lhe que sim e ele riu e disse naquela voz lá dele, meio moldava ou lá o que era, 'já estou com sorte'. Ali no parque, às escuras, achei que o melhor seria pisgar-me e, em cima do meu sapatinho alto, assim fiz, avançandomente resoluta. Não faço ideia quem seja a criatura. Quando lá cheguei, o grande espaço já apinhado, contei a um colega e perguntei se temos algum estrangeiro. Disse-me que os colegas estrangeiros não tinham sido convidados, participarão em jantares nos respectivos países. Isso sei eu, aquele é estrangeiro mas já arranha o português. Ele disse que desconhecia. Olhei em volta e não vi o estrangeirado. Mas, no meio daquela confusão, estranho seria se o descortinasse.
Entretanto, naquela das entradinhas circulantes, coisinhas pequeninas e boas, bolinhas disto, espetadinhas daquilo, amuse-bouche a preceito, estava eu na conversa com uma colega que não via há algum tempo. Nisto chega um homem que vem cumprimentá-la e ela apresenta-mo. Nem eu alguma vez o tinha visto ou ouvido falar nele e, creio, nem ele me conhecia. E nisto, do nada, o homem começa a falar-me do seu percurso profissional, o que fez e deixou de fazer, num malandro que há uns anos lhe cortou as pernas impedindo-o de progredir -- e disse o nome do dito malandro -- e que agora já não lhe interessa porque já decidiu ir-se embora e que vai iniciar uma nova fase na sua vida e que até já perdoou ao outro. E continuou a falar-me em projectos e no que gosta de fazer e tanto falou que, por fim, já falava na beleza língua portuguesa e já dizia graças. Quando uma outra colega veio de longe para me abraçar, eu despedi-me do senhor e ele agradeceu-me e eu, pasmada, 'mas está a agradecer-me porquê?' e ele 'estou a agradecer ter-me dado a oportunidade de me ouvir'.
E, ao jantar, ao contar ao meu colega do lado o que o senhor me tinha contado e como me pareceu que até estava emocionado a contar-me tudo aquilo, o meu colega, de olhos arregalados, perguntou: 'Mas contou-lhe isso tudo a propósito de quê?' E eu: 'Pois, não sei, não faço ideia'. E ele: 'Mas, do nada, saíu-se com isso tudo?' E eu: 'Sim. A sério. Nao sei como nem porquê mas foi'. É que não sei como aconteceu pois foi-me apresentado e, acto contínuo, estava a falar-me da sua vida. O meu colega, olhando muito sério para mim, disse: 'É aquele seu lado místico. Você não quer acreditar mas olhe que eu não tenho dúvidas'. E eu aí não disse nada. É que, de facto, não sei que fenómeno é este. Isto passa a vida a acontecer-me. Gostava de ser filmada para que outras pessoas pudessem testemunhar e interpretar. É que eu não tenho explicação.
E poderia falar de alguns outros aspectos, alguns bem divertidos, mas daqui a nada são três da manhã, o meu marido está a perguntar-me se não serão horas de me ir deitar e eu acho que são.
Conto só que, quando me raspei, uma vez mais meio à papo-seco (já que centenas ainda lá ficaram), ao despedir-me do meu colega do lado, sem querer desejei-lhe bom natal. E ele: 'Homessa! Já? Mas vai de férias?' e aí eu desatei-me a rir. 'Bolas! Que estupidez. Com tanto espírito natalício, parece que já estamos lá. Que ridículo'. Ele deu-me um beijo de despedida e disse-me: 'Até para a semana.'
E vim de novo, saltinho alto pela calçada, noite cerrada, até ao carro que estava todo molhado, tanta a humidade. Gps para casa e aí vem ela, por campos nunca antes desbravados, sem fazer ideia onde estava, estradas sem marcação, sem iluminação. Mas vim cá dar e isso é que é preciso.
Conto só que, quando me raspei, uma vez mais meio à papo-seco (já que centenas ainda lá ficaram), ao despedir-me do meu colega do lado, sem querer desejei-lhe bom natal. E ele: 'Homessa! Já? Mas vai de férias?' e aí eu desatei-me a rir. 'Bolas! Que estupidez. Com tanto espírito natalício, parece que já estamos lá. Que ridículo'. Ele deu-me um beijo de despedida e disse-me: 'Até para a semana.'
E vim de novo, saltinho alto pela calçada, noite cerrada, até ao carro que estava todo molhado, tanta a humidade. Gps para casa e aí vem ela, por campos nunca antes desbravados, sem fazer ideia onde estava, estradas sem marcação, sem iluminação. Mas vim cá dar e isso é que é preciso.
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Obviamente, as fotografias que pertencem a Jorge Sato e são um tributo a Niemeyer nada têm a ver com o texto. E o Somewhere interpretado pelo Tom Waits também está aqui apenas porque me apeteceu ouvir.
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E a todos desejo um belo sábado.
O seu colega tem toda a razão, nem precisamos de coisas muito metafísicas, pois os fenómenos de transferência e contransferência determinam essas afinidades e a UJM é uma pessoa que não vive só na epiderme, tem muita sensibilidade afetiva e emocional e quem tiver capacidade para o perceber, ainda que inconscientemente, irá sincronizar muito bem numa conversa mais autorevelativa com a UJM.
ResponderEliminarEntão o jantar foi onde Judas perdeu as botas, muito bom, eu por acaso sou muito dado a caminhos desconhecidos, mas à noite e com hora marcada percebo bem o stress. Normalmente costumo fazer sempre uma "preview" para não confiar às cegas no GPS (que raramente uso).
Um belo fim-de-semana.
Olá Francisco,
ResponderEliminarGostei de ler o que escreveu. Talvez eu seja um pouco como diz ou, pelo menos, verifico que, por razões que frequentemente não sei explicar, as pessoas aproximam-se muito de mim, quer as que conheço quer as que desconheço. Mesmo aqui tem-me acontecido algumas pessoas se aproximarem muito de mim, através de mail. Penso que talvez seja por me interessar genuinamente pelos outros. Mas, sabe, o mais surpreendente é eu já ter salvo, por duas vezes, pessoas do suicídio. É qualquer coisa que me parece coincidência mas que, ainda assim, me deixa intrigada. E muito emocionada quando penso nisso.
Sim, o jantar foi onde Judas perdeu as botas. E à noite, com campo pelo meio, tudo escuro e estradas mal marcadas, sozinha no carro, é o que diz: um stress. E longe. Bem poderia ter feito um preview... ter-me-ia esquecido de tudo...
Uma bela semana para si, Francisco.