Procurámos o mar.
Se o mar é um deus, é um deus com estados de alma, umas vezes apiedado, outras contemplativo e sereno, outras, como hoje, todo ele fúrias, exaltações. Um deus infinitamente forte, de uma força indomável, incontrolável, inclemente. Um deus superior a tudo. Indiferente a tudo.
A lente da máquina fotográfica sempre embaciada tanta a humidade, o paredão invadido, com areia e água e cheio de flocos de espuma espessa, o ar que insufla as águas ali materializado.
Os acessos ao areal interditados mas, ainda assim, alguns inconscientes a passear, certamente sentindo-se rebeldes e especiais, se calhar sentindo-se superiores aos elementos.
Mas logo a força das águas lhes provou o risco que corriam. Num dos casos o meu marido chegou-se às rochas e zangou-se, que é uma inconsciência, que é assim que morrem pessoas, que fazem correr riscos a quem os vai resgatar.
Uma mulher ficou com as pernas molhadas e sem sapatos e um homem ficou molhado até à cintura. O meu marido, que os ouviu a falar, disse que pareciam estar noutra, como que eufóricos.
Não sei, mas vê-los como os vi fez-me impressão. É que, por vezes, têm sorte e podem sentir a superação. Outras vezes, por mera futilidade, arriscam a vida e fazem arriscar a vida dos que querem salvá-los.
E, depois, as gaivotas. Poucas gaivotas.
Não sei para onde vão as gaivotas em dias assim. Onde se acolhem? Voam para longínquos rochedos? Para torreões secretos, nos confins da terra? Não sei.
Fotografei as poucas que ali se chegaram.
Fotografei as poucas que ali se chegaram.
No areal, umas quantas. Na praia que, no verão, foi preenchida com areia há agora uma funda piscina. O mar levou parte da areia. Entre a piscina e o mar, uma língua de areia onde as gaivotas se agrupam.
Acho-as maravilhosas. Fotografo-as tentando captar os seus movimentos.
Lá em baixo uma mulher de cabelo encarnado fotografa-as também. E eu fotografo a mulher de cabelo encarnado. Naquele contexto, aquele cabelo parece uma insólita plumagem rubra. Introduz uma nota de cor numa paisagem quase incolor.
Lá em baixo uma mulher de cabelo encarnado fotografa-as também. E eu fotografo a mulher de cabelo encarnado. Naquele contexto, aquele cabelo parece uma insólita plumagem rubra. Introduz uma nota de cor numa paisagem quase incolor.
Ao fundo, quase oculto pela névoa (reparem na fotografia acima), um homem arrisca, soltando o cão. Pouco depois, pressentindo a força das ondas, o cão foge para terra enquanto o dono é envolvido pela água.
Sem quererem saber de quem as olha ou dos riscos que as pessoas correm, as gaivotas desfrutam a sua livre e feliz existência.
Sem quererem saber de quem as olha ou dos riscos que as pessoas correm, as gaivotas desfrutam a sua livre e feliz existência.
Aquelas asas grandes, aqueles bailados longos, aquela elevação pelos ares em total liberdade, aquela graça e tranquilidade enquanto caminham pela beira da água, tudo nelas me fascina.
E o ar branco, a névoa, a luz diluida na neblina, tudo muito belo, muito apaziguador apesar do rugido, apesar da força bruta das águas ali ao lado. Ou talvez mais ainda por isso mesmo.
Por vezes, a luz branca transforma em luz e em prata as ondas que se agigantam ao largo. Custa olhar. Parece irreal.
Em casa, para além de trabalhar e de ter ido comprar mantimentos, li. Li de gosto, devagar, saboreando o sentido e a música das palavras, o verso e o reverso, a sua sombra e a sua luz.
Senti-me feliz a ler. Aquela sensação de paz vivida instante a instante, de satisfação serena e boa.
Senti-me feliz a ler. Aquela sensação de paz vivida instante a instante, de satisfação serena e boa.
bebemos os poemas e a paixão
bebemos sôfregos o vento ardente
até perdermos o sentido das palavras
digo-vos é mentira
o corvo não regressou à arca de noé
continuou a voar entre duas águas
perdeu-se na travessia do caos e da ordem
fascinado pelas líquidas imagens
que se desprenderam do infinito dilúvio
quando a terra por fim secou
o corvo impregnava tudo de treva
para que a pomba não encontrasse o ramo de oliveira
e deus
ao olhar o que nunca fora obra sua
mal soube por onde fissurar tanta escuridão
vingou-se
aprisionando os homens em territórios
de abandono e desolação.
Ave, Maria!
Ave, carne florescida em Jesus.
Ave, silêncio radioso,
urdidura de paciência
onde Deus fez seu amor inteligível.
Senhor meu amo, escutai-me,
a donzela espera por vós, no balcão.
Cuidado que não acorde os fâmulos
a paixão que estremece o vosso peito.
Os galgos estão inquietos, a alimária pateia.
Rogo-vos que vos apresseis.
E, agora que parei de ler, penso outra vez no mar. Como serão as ondas que se formam ao longe, amplas, imensas, quando ninguém as vê? Serão igualmente assustadoras ou, esquecidas do medo dos homens, suavizarão as arestas e os rugidos e avançarão com mais vagar, ondulantes, desfrutando a absoluta solidão da noite? Haverá espuma branca e rendilhada a rematar as ondas ou a espuma será negra, densa e perfumada de maresia como a paixão que se cola ao corpo das mulheres nas noites de irreprimível paixão?
Não sei. Há muitas coisas que não sei.
E essas tantas coisas ainda por saber enchem-me de uma tal alegria que só eu sei.
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Desejo-vos uma boa semana, a começar já por esta segunda-feira
Desejo-vos uma boa semana, a começar já por esta segunda-feira
Em nome da velha amizade blogosférica: mansas festas e com jeito do Rei dos Leittões!
ResponderEliminarOlá Pata, Sua Negra Majestade,
ResponderEliminarGostei dos seus votos tal como gosto sempre da sua graça que, no Rei dos Leittões, frequentemente, me faz rir.
Achei a sua árvore de Natal e o seu presépio qualquer coisa de surreal. Olho e desato a rir. É como aquele seu cartão de Boas Festas: maluqueira vintage. Também acho que é assim que se quer o Natal: bem disposto.
Um dia feliz para si e para os seus, Exmo e Sereníssimo Leittão Real.