domingo, novembro 24, 2019

Eu, guardadora de segredos
[Quando em meu mudo e doce pensamento chamo à lembrança as coisas que passaram]





Uma Leitora enviou-me um mail para me dizer aquilo para que outros já antes já me tinham alertado: o fundo colorido que o blog tinha dificultava a leitura. Eu via bem mas, provavelmente, em alguns computadores ou telemóveis via-se mal. Várias vezes antes tentei perder a cor e outras tantas voltei atrás, involuntariamente deixando que a paleta inteira se vertesse sobre a superfície sobre a qual as minhas palavras, que geralmente nascem adormecidas, ganham vida. 

Ontem decidi-me: hei-de ser capaz de ser mais forte do que eu. Hei-de ser capaz de me despir de cores e ruído, de me desnudar de tudo -- de veludos, rendas e folhos, de flores, de luz colorida, de brilhos -- e assim permanecer. E tentei. Mas pode alguém ser quem não é? Comecei com a página em branco e, mal dei por mim, já tudo estava tingido de mil cores. Recuei, tentei moderar-me. Por fim, deixei-o como agora o têm. Mas não estou convencida. Não sei por quanto tempo conseguirei ver as palavras deitadas em lençol branco.

Enquanto o mudava, olhei para mim. Tinha chegado a casa tarde, cansada, muitos quilómetros em mim sob chuva intensa, e, como sempre faço, tinha-me lavado, apanhado o cabelo, despido. Depois tinha vestido uma roupa confortável: umas calças de veludo macio, preto, uma blusa de manga curta, justa, decote em bico, em cinzento clarinho, umas meias quentinhas às risquinhas de vários tons de cinza. E, até ver, tudo sob controlo, ton sur ton em discreto. Mas estava com frio. Vesti, então, um casaquinho fininho em verde relva, com fecho eclair à frente e capuz. Só que, durante o dia, tinha estado durante horas num solar apalaçado requintadamente decorado, pé direito altíssimo -- mas frio, frio, frio. Ou melhor, tinha aquecimento mas o calor, como todos os calores, subiu, deixando-me com os pés gelados. E eu suporto bem o frio em todo o lado excepto nos pés. Resfriei-me. Então, aqui no sofá, continuei a sentir-me com frio. Fui escolher um agasalho e peguei num casaquinho em lã macia, fúcsia. Pareceu-me bem. Mas depois, ao olhar para mim, constatei como, até à noite, cansada, resfriada, me sabia bem sentir sobre o corpo a vibração das cores.

Enfim.

E, no entanto, como gosto de sobriedade, planura, limpidez.

É um caminho que tenho que percorrer: ir deixando para trás as camadas de pele carregadas de cor até conseguir estar nua, envolta apenas em luz, até me esquecer da gramática, das leis do mundo, até conseguir escrever palavras destiladas, puras, palavras que contenham apenas a música natural que as habita -- palavras puras escritas sobre a superfície transparente do vasto espaço.

Mas adiante.

Durante o dia de sexta-feira muitas coisas se passaram, algumas delas bem interessantes e que dariam belos títulos em primeiras páginas. Mas a mais curiosa de todas foi a que se passou no carro, quase à chegada. A outra pessoa que estava no carro, justamente a que estava a conduzir, recebeu uma chamada. Como estava com o telefone passado para o carro, em alta voz, e não teve o sangue-frio para dizer que estava acompanhado, a outra pessoa falou à vontade. Vi-o a ficar consternado com o que estava a ouvir, estranhamente apreensivo, depois atrapalhado, atarantado por eu estar a ouvir. No fim, depois da chamada ter terminado, inventou uma explicação mal alinhavada que me deixou ainda mais intrigada.

Ontem à noite mal pude esperar por googlar o nome da pessoa referida na chamada e confirmei: aquilo que a pessoa que fez a chamada dizia que ia acontecer, de facto, já estava confirmado. Vários jornais online o referiam. Fiquei espantada: porque é que isso incomodou tanto a pessoa que estava comigo e a que lhe ligou? Não sei e isso deixa-me muito desconfiada, muito mesmo.

E, no entanto, estou convencida que mais vale nem tentar descobrir até porque tenho a intuição que será preferível nem o saber.

A vida é uma tapeçaria sem plano ou guião cujos pontos e cores vão nascendo de acasos e opções que, a cada momento, vão acontecendo. Quem me diz que se eu desse um passo, um só -- e sei bem qual seria --  não mudaria para sempre a vida das duas pessoas cujo telefonema acidentalmente ouvi? Mas não o darei e, portanto, o que vier a acontecer não terá a minha influência.

(E intuo que o fim de semana dessas duas pessoas está a ser duplamente intranquilo: primeiro, pelo assunto do telefonema e, segundo, por o telefonema ter sido testemunhado).

Agora que escrevo isto lembro-me de um mail que um dia recebi. Era de um blogger que acompanho, com quem simpatizo, e com quem, na altura, já tinha trocado alguns mails. Nesse mail, ele confessava a sua paixão. Logo percebi que a destinatária era outra que não eu pois não apenas continha o nome da sua amada como dava para perceber que se tratava de um amor clandestino,  alguém a quem ia ver dentro de poucas horas, provavelmente disfarçando o laço que os unia para que os colegas não percebessem. Pouco depois recebi outro mail pedindo desculpa pelo equívoco. Descansei-o, que não se preocupasse. E apaguei o mail. Mas que problemas ele poderia ter arranjado se eu não fosse como sou, uma guardadora de segredos?

E quantos mais segredos tenho guardado ao longo de toda a minha vida? Tantos, tantos. Por vezes penso que um dia deveria escrevê-los para que nunca deles me esqueça e para que um dia, mais tarde, se para isso me der, possa escrever um livro de segredos. Sem nomes, sem qualquer informação que permita identificar os seus intervenientes. Despi-los da realidade que um dia tiveram como se de um processo de ecdise se tratasse. Segredos abstractos, reduzidos à sua essência.


Outra coisa que eu gostava seria de, um dia, recolher todos os poemas que me têm oferecido. Ou no blog ou por mail ou de outras maneiras. Por vezes, poemas ditos. Fico sempre tão sensibilizada. Não há dádiva mais sentida, presente que eu receba com maior emoção.

Devia recolhê-los, juntá-los, guardá-los numa caixinha preciosa e um dia oferecê-la ao mundo como prova de agradecimento a todos quantos me têm trazido momentos tão felizes.



E porque me está a apetecer ouvir um poema:


ou desta forma:


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As fotografias são da autoria de Nick Knight.

No título deste post, entre parêntesis, um pequeno excerto do soneto 30 de Shakespeare na tradução de Vasco Graça Moura

PS: E depois de ter escrito este post, voltei a mudar o aspecto do blog, já retirei o preto do exterior e já mudei o lençol que era branco e agora é cor de baunilha. E já mudei todas as demais cores e a imagem do início. Ou seja, já mudei outra vez de pele. Sou uma ecdísia, uma stripper.

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E a todos desejo um belo dia de domingo

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