Lembro-me de quando comecei a namorar o meu marido. Já andava com ele mas era coisa não direi à socapa mas, enfim, como dizer?, meio clandestina. Nem isso. Talvez, apenas, não publicamente assumida. Mas, naquele dia, tinha uma notícia para lhe dar. Ele tinha-me trazido um daqueles tubinhos com água de sabão em que a tampa tinha uma haste com uma argola, para fazer bolhinhas. Tinha comprado a um vendedor ambulante junto ao metro. E eu fiquei toda contente e experimentei mas a notícia era outra e falava mais alto. Ia pôr uma carta no correio. E assim fiz. Depois disse-lhe: era a carta a pôr fim ao namoro. Durante o fim de semana tinha feito por isso mas o meu namorado não tinha aceitado, pediu tempo, pediu que eu percebesse que o que eu sentia pelo outro era um entusiasmo passageiro, assegurou-me que amor de verdade era o que havia entre nós. De tal forma foi que percebi que tinha que ser um corte abrupto, a seco, sem apelo, sem lágrimas.
E assim foi. Era inverno e o dia estava muito húmido, uma névoa densa envolvia Lisboa. Aquele por quem me tinha apaixonado percebeu a relevância do gesto e, embora andasse há que tempo a pedir que eu o fizesse, naquele momento estava sério, como se tivesse acabado de assistir a um acto cruel. E sabia como me custava fazê-lo, sabia o afecto que eu sentia pelo outro, como me custava fazê-lo sofrer. E eu estava também um pouco angustiada pois tinha preferido que o corte tivesse sido concretizado cara a cara e não por carta. Além disso, sabia o quão doloroso este meu gesto a a quase brutalidade das palavras daquela carta ia ser para aquele outro que tão intensamente me amava.
E, portanto, envolta numa névoa fria e lacrimejante, eu ia dizendo que precisava de espaço, de um interregno, queria fazer uma pausa antes de voltar a envolver-me a sério. Ele ouvia-me em silêncio, não sei se compreendendo, se lamentando que, ao fim de tanto tempo à espera que eu quebrasse aquele vínculo, afinal, agora que o tinha feito, estivesse a pedir mais tempo.
A verdade é que, comigo, por vezes, o tempo acelera loucamente; e o tempo que eu estava a dizer que precisava esgotou-se como um breve sopro. Acabei agora de ver a distância que percorremos. Trezentos metros. Ao fim de trezentos metros, e vendo-o eu tão silencioso, coloquei-lhe uma mão no rosto, virei-o para mim e, logo ali, selei com um demorado beijo o namoro que, na prática, estava a começar.
Ainda tentei ir para a aula que tinha a seguir. Fui até lá e ele comigo. Mas não nos largávamos. Entretanto, já chovia. Mas nem dávamos pela chuva. Decidimos ir passear para o Parque Eduardo VII. Abraçados e felizes, nem nos importávamos por estarmos a ficar molhados. Lembro-me que, nos intervalos, ainda tentava fazer fazer bolhinhas de sabão mas, ou porque a humidade exterior fosse tanta ou porque não me concentrasse, tenho ideia que as bolhinhas de ar não floresciam.
Nesse inverno choveu muito. Grande parte das minhas memórias desses meses abençoados está envolta em neblinas, chuvas, frios e muitos beijos. Tínhamos que andar sempre abraçados para nos protegermos. Passeávamos muito. Lembro-me de um passeio em Sintra, as árvores a pingar, envoltas em nuvens, nós a subir a pé a estrada para a serra. Tudo me parecia muito romântico. Havia, na minha cidade natal, um café recente, aberto por um italiano, que tinha um cappuccino muito bom. As chávenas grandes e bonitas vinham quentinhas e eu envolvia-as com as minhas mãos e aquele cheirinho a café, a chocolate a natas parecia-me provir de néctar de deuses. Tinha também uns gelados artesanais, na altura os únicos na cidade, que eu adorava. E, então, sentávamo-nos numa mesa num recanto de onde se via a rua e ali estávamos, conversando, dando-nos as mãos, enamorados, enquanto víamos a chuva a cair lá fora. Isto ao fim de semana quando ia a casa dos meus pais. Durante a semana, todos os dias ficávamos juntos até tarde e, já com a noite avançada, ele ia levar-me a casa. Chovia na rua, íamos abraçados debaixo do chapéu de chuva e invejávamos as pessoas que estavam dentro das casas iluminadas cujo conforto adivinhávamos.
Ainda agora, eu que sou dada à luz, ao calor, a andar com pouca roupa, anseio pelos frios e pelas chuvas, sinto saudades do som da chuva, gosto de estar no sofá agasalhada no meu canto, gosto de sentir que a natureza se regenera, se limpa, sinto que apela ao romance, aos longos e apertados abraços, aos olhares que mergulham na alma, ao amor.
E hoje, que não choveu nem esteve frio, depois de termos ido a casa dos meus pais e de termos passeado pelas ruas por onde andávamos quando namorados, resolvemos ir ao cinema.
Um dia de chuva em Nova Iorque. É um filme suave, agradável, inteligente, bom para se ver e sair de lá a sorrir, e, podendo, a andar de mão dada, a dar beijinhos. Tem uma música bonita, tem um ambiente romântico, tem aquela ironia nonchalante tão típica de Woody Allen. A minha filha perguntou-me: mas não é um filme para adolescentes? E eu acho que sim, também para adolescentes. Mas, quis ela saber, alguma coisa de especial? E eu não acho que tenha alguma coisa de especial no sentido de excêntrico, do nunca visto, do insólito. Não, tudo muito normal, cool, muito agradável, sem dramas, com bons sorrisos à mistura.
Antes, na apresentação do que está em exibição ou por chegar, vi monstros, mortos-vivos, armas, gente que aterroriza, gente sem olhos, gente que escorre sangue, seres que destroem cidades e atemorizam o mundo. O filme Um dia de chuva em Nova Iorque não é nada disso, é um filme com pessoas normais a viverem uma situação normal numa cidade normal. E quem quiser que ponha aspas nos normais que quiser pois, na verdade, o que é normal para uns não é normal para outros. Mas, quero eu dizer, há uma dimensão humana no filme e isso, em tempos de crescente desumanidade, é bom.
Ainda agora, eu que sou dada à luz, ao calor, a andar com pouca roupa, anseio pelos frios e pelas chuvas, sinto saudades do som da chuva, gosto de estar no sofá agasalhada no meu canto, gosto de sentir que a natureza se regenera, se limpa, sinto que apela ao romance, aos longos e apertados abraços, aos olhares que mergulham na alma, ao amor.
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E hoje, que não choveu nem esteve frio, depois de termos ido a casa dos meus pais e de termos passeado pelas ruas por onde andávamos quando namorados, resolvemos ir ao cinema.
Um dia de chuva em Nova Iorque. É um filme suave, agradável, inteligente, bom para se ver e sair de lá a sorrir, e, podendo, a andar de mão dada, a dar beijinhos. Tem uma música bonita, tem um ambiente romântico, tem aquela ironia nonchalante tão típica de Woody Allen. A minha filha perguntou-me: mas não é um filme para adolescentes? E eu acho que sim, também para adolescentes. Mas, quis ela saber, alguma coisa de especial? E eu não acho que tenha alguma coisa de especial no sentido de excêntrico, do nunca visto, do insólito. Não, tudo muito normal, cool, muito agradável, sem dramas, com bons sorrisos à mistura.
Antes, na apresentação do que está em exibição ou por chegar, vi monstros, mortos-vivos, armas, gente que aterroriza, gente sem olhos, gente que escorre sangue, seres que destroem cidades e atemorizam o mundo. O filme Um dia de chuva em Nova Iorque não é nada disso, é um filme com pessoas normais a viverem uma situação normal numa cidade normal. E quem quiser que ponha aspas nos normais que quiser pois, na verdade, o que é normal para uns não é normal para outros. Mas, quero eu dizer, há uma dimensão humana no filme e isso, em tempos de crescente desumanidade, é bom.
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E, nesta onda da névoa, da chuva, da tranquilidade, permitam que partilhe convosco um daqueles vídeos que gosto imenso de ver. Espero que também gostem.
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As pinturas lá em cima são da autoria de Osnat Tzadok e a mim parecem-me paisagens urbanas envoltas em chuva. A música é Kiss the Rain de Yiruma. E, no título, asterisquei o 'romantismo dos dias chuvosos' pois sei bem que nem todos os dias chuvosos são românticos: há os dias de juízo aquando de chuvas excessivas, há as dores do corpo para quem não tem como proteger-se, há os dias chuvosos associados a tristes memórias. Mas, em abstracto e, sob o filtro da benevolência, a chuva é boa para abraçar os afectos, lá isso é.
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Wabi-sabi
ResponderEliminarEm nome das paixões, esse bálsamo que corrói, efémero kintsukuroi.
Abnegação
Chovam lírios e rosas no teu colo!
Chovam hinos de glória na tua alma!
Hinos de glória e adoração e calma,
(Minha pomba) Meu amor, minha pomba e meu consolo!
Dê-te estrelas o céu, flores o solo,
Cantos e aromas o ar e sombra a palma,
E quando surge a lua e o mar se acalma,
Sonhos sem fim seu preguiçoso rolo!
E nem sequer te lembres de que eu choro...
Esquece até, esquece que te adoro...
E ao passares por mim, sem que me olhes,
Possam das minhas lágrimas cruéis
Nascer sob os teus pés flores fiéis,
Que pises distraída ou rindo esfolhes!
Antero de Quental
Olá ninghem,
ResponderEliminarSempre surpreendente. Consegue trazer-me o que para mim é inesperado. Antero de Quintal? Jamais me ocorreria. As referências musicais: desconheço-as sempre. Mas tudo me agrada. Tudo faz sentido de uma maneira sempre peculiar. Leio, releio, ouço. Muito obrigada. Os seus mil nomes são a sua unidade.
Não deixe de me surpreender, está bem?
Uma semana feliz.