O dia que já terminou não se recomenda. Fui lá porque quis, porque sei que, no meio de muito aparato, há sempre alguma coisa que se aproveita. O pior é que o pouco que se aproveita está envolto em muita buzzword, em muito daquele jargão para o qual já não tenho muita paciência. Sinto-me bicho raro, ave em extinção no meio de muita gente muito feliz com pouca coisa. Há muita gente que gosta muito de se rever e que cultiva esse networking. Eu não. Sou bicho do mato que não encaixa no fusuê urbano, incomoda-me o burburinho, os grupinhos em que as pessoas falam muito, julgando que estão a falar a sério. não dizendo nada que me interesse.
Na volta é o peso da idade. Com mais de mil anos, já vi e ouvi muita coisa, já distingo a milhas o que é sol de pouca dura, pechisbeque, deslumbramento à toa, palavras que só duram um ano. E depois basta-me olhar para a pinta de um cromo para perceber que dali não sai sumo que se aproveite, só entusiasmo fajuta por coisa de nada, tesão do mijo disfarçada de motivation. Hoje até pontapé na gramática um expert da cocada preta deu. Eu que estava alheada, com a consciência desligada, sem prestar atenção ao que ali se dizia, até acordei, espantada, com o pontapé. Apenas me acalmei porque pensei que se calhar foi engano, distração, nervos. E pensei que quem me garante que, volta e meia, a pensar já na frase seguinte, não atropelo a frase em que estou. Quando me dá para fazer vídeos, aqueles que estão no youtube, nem gosto de ouvir e não é só pela voz que mais parece presa à terra do que saída de dentro de mim, é também porque constato que salto palavra, que encurto raciocínio para passar à frente e falar do que vem a seguir. E quem me garante que, quem ouve, não diz também olha-me esta, que nem palavra direita diz, que nem remata a linha com que cose as palavras, que deixa buraco a meio do palavreado. Por isso, desculpei o pimpão que não soube usar o tempo verbal e disse uma asneira. E voltei a alhear-me.
E o pior é que, aqui chegada, muito mail profissional e muita treta me esperava. Uma pessoa com a cabeça feita em água e, em vez de poder descansá-la, tem que queimar os poucos neurónios que restam com matéria igualmente desinteressante e, por vezes, arreliadora. Uma gaita.
Quem acabou por me salvar o dia -- ou melhor, o nada que restava dele -- foi o meu amigo: o algoritmo do YouTube. Cá para mim pensou: poor girl, so needed of an innocent joy. E nem sei se o algoritmo agora se expressou da melhor maneira porque nem era bem isto que eu queria dizer. Era mais que ele me apareceu a dizer que achava que eu ia gostar disto. E isto eram uns vídeos em que Brendan Kavanagh, por acaso versado em Literatura mas que tem esta graça de tocar em gares ou aeroportos atraindo toda a espécie de gente livre, se divertia à brava. É que, vendo um piano ou alguém a tocá-lo, uns chegam-se e desatam a dançar, outros sentam-se ao lado dele e tocam, outros cantam. Gente que dá gosto ver. Não se armam em inteligentes, não usam palavras da moda, não se entusiasmam com a perspectiva de terem algum pequeno poder. Não. Do que se vê, é gente que fica feliz só por existir.
E foi assim que, apesar do sono e apesar de saber que daqui a nada tenho que estar a pé para mais uma dose -- e bolas para as doses servidas de madrugada, não há saco que aguente estes eficientes executivos que impõem um regime madrugador aos outros -- me deixei aqui ficar a ver e ouvir estas alegres pianadas. Escolhi alguns para que vejam se também gostam como eu. Tão bom.
Era bom era que nos lugares que frequento tivesse a sorte de haver também disto: gente a tocar piano, a dançar, a improvisar, a dar largas à vontade do corpo. Isso é que era. Mas não tenho essa sorte. Só o meu amigo algoritmo do YouTube é que me conhece bem e me aparece a desoras, a dar-me o braço para me pôr a dançar com os olhos e a sorrir com os dedos.
Era bom era que nos lugares que frequento tivesse a sorte de haver também disto: gente a tocar piano, a dançar, a improvisar, a dar largas à vontade do corpo. Isso é que era. Mas não tenho essa sorte. Só o meu amigo algoritmo do YouTube é que me conhece bem e me aparece a desoras, a dar-me o braço para me pôr a dançar com os olhos e a sorrir com os dedos.
Enfeitei o post com pinturas de Toulouse-Lautrec por algum motivo que não consigo descortinar. E lá em cima um tango nude pela Compagnia Khorakhané Danza pelas mesmas desrazões.
------------------------------------------------------------------------------------------------
E a todos desejo um dia feliz, vivido em liberdade, com boa disposição. E saúde.
😍
"A realidade é aquela coisa que não se vai embora quando se deixa de acreditar nela."
ResponderEliminarPorque a sua candura é desarmante - obrigado.
Que maravilha, nada como umas belas danças.
ResponderEliminarUm rico dia!
Se um dia vir, numa rua, uma cota a dançar quase como a menina de amarelo...
ResponderEliminarsou eu
:)
GG
Bom fim-de-semana: https://youtu.be/PpukNp3eKFY
ResponderEliminar(Apesar de ser um pé de chumbo, bem que gostava de experimentar uns desses estilos do swing... Boogie, Lineu Hop, sei lá. Uma pena não haver nada disso aqui perto!)