Há gente que a gente não conhece e de quem, no entanto, já se habituou à companhia. Dois deles são da rádio. Não são só esses mas desses eu hoje quero falar. Poucas vezes consigo ouvir os Sinais do Fernando Alves mas, quando posso, não perco e, mesmo antes dele começar, já antecipo o arrepio que sempre sinto quando aquela voz encorpada roça aquelas suas melódicas palavras que caminham para o final no qual tudo converge, como braços de rio a avançar para uma doce enseada. E não desconheço a mecânica dos rios, não, usei mesmo aquela imagem por deliberação porque assim as palavras dele, correndo, sobressaltando-nos ou levando-nos nos braços e, no fim, não se perdendo no mar mas, antes, tudo se resolvendo e aquietando, represado em nós.
Hoje consegui ouvir. Falava de olhares, de uns olhos azuis e de uns outros, verdes que ficavam amarelos, falava de duas mulheres, uma que recordava e outra que ouvia, e falava também de um poema de Octavio Paz.
Cheguei aqui para ouvir outra vez, o arrepio a querer de novo percorrer-me a pele. E, então, aparece-me o Nónio, que quer que me registe se quero ouvir os Sinais. Um desconsolo. As belas palavras e profunda voz do Senhor Rádio a serem condicionadas por uma treta contra a qual os jornalistas deveriam manifestar-se. Gostava de aqui poder partilhar convosco o que senti ao ouvi-lo. Não posso, não quero ser condicionada desta forma tão escancaradamente absurda.
E queria, a propósito do que ouvi e de outras coisas cá minhas, falar de olhares, de como, para mim, é indispensável o contacto visual com o olhar do outro. Pelo olhar me desnudo, pelo olhar procuro a alma do outro. E queria contar como os meus olhos mudam de cor e como me desreconheço quando espero um tom do fundo do mar e os vejo, no espelho, da cor de pedras reluzindo ao sol e não sei se é o espelho que lhes dá a luz ou se são os meus olhos que inventam cores novas quando se vêem ao espelho. E queria contar que os meus olhos míopes parece que não precisam de ver para me darem a conhecer o que dizem os olhos dos outros e adivinham até o temor dos que não deixam que os meus os olhem de frente e em profundidade, como que receando que eu mergulhe fundo demais. Mas isto, se calhar, não é bem assim, isto, se calhar, sou eu que sou dada a rêveries, a inofensivas loucuras.
Mas, pronto, não tendo eu para aqui partilhar convosco os Sinais, não falo.
E foi também no carro que tive uma má notícia: tantas vezes a nossa companhia ao sábado junto à hora do almoço, Ruben de Carvalho -- que se divertia à grande com Jaime Nogueira Pinto, os fantásticos Radicais Livres -- tinha-se libertado das amarras da vida. E escrevo assim não porque a hora careça de metáfora mas porque não gosto de usar a palavra certa. A palavra certa assusta-me quando a a ceifa atinge pessoa que me faz boa companhia. Parece que receio que contagie, que seja mau presságio. Evito.
Muitas vezes tínhamos que levantar o som, apurar o ouvido, eles falavam ao mesmo tempo, riam-se, tinham o prazer da concordância, sempre contentes por se lembrarem das mesmas coisas ao mesmo tempo, avindos apesar de tudo. Histórias, episódios, apartes -- e sempre ambos a completarem-se, rindo da sintonia. Riam um do outro, o da esquerda e o da direita, gozando com a própria irreverência face à ortodoxia. Radicais e livres. E agora o Jaime Nogueira Pinto não terá o seu amigo para desfiar memórias e opinião a par e par e nós, no carro, não teremos o prazer de o ouvir trocando postalinho com o seu companheiro.
Muitas vezes tínhamos que levantar o som, apurar o ouvido, eles falavam ao mesmo tempo, riam-se, tinham o prazer da concordância, sempre contentes por se lembrarem das mesmas coisas ao mesmo tempo, avindos apesar de tudo. Histórias, episódios, apartes -- e sempre ambos a completarem-se, rindo da sintonia. Riam um do outro, o da esquerda e o da direita, gozando com a própria irreverência face à ortodoxia. Radicais e livres. E agora o Jaime Nogueira Pinto não terá o seu amigo para desfiar memórias e opinião a par e par e nós, no carro, não teremos o prazer de o ouvir trocando postalinho com o seu companheiro.
Se calhar vai chegar o dia em que vou começar a sentir que o meu mundo vai ficando mais pobre, sem muitos daqueles que acompanham os meus passos. Ainda não quero dizer isso porque não sou fatalista, não gosto de curtir tristeza. Mas custou-me mesmo que ele se tivesse ido embora e, ainda por cima, sem dar aviso, sem que eu fosse criando mentalização para o que estava para vir. E falo de forma egoísta, não falando no sofrimento dos que lhe são próximos, falando apenas de mim, no carro, a ouvi-lo. Mas acredito que, quem fala na rádio, fala como se falasse para cada um que o ouve e é dessa tertúlia agradável e culta que vou sentir muita falta.
Mas é assim mesmo a vida, cheia de coisas destas, de olhos que se fecham, coisas nem sempre esperadas, coisas que nem sempre causam arrepio bom na pele.
Mas continua. Sempre continua, a vida.
Mas continua. Sempre continua, a vida.
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Os teus olhos - Octavio Paz
Tus ojos son la patria del relámpago y de la lágrima,
silencio que habla,
tempestades sin viento, mar sin olas,
pájaros presos, doradas fieras adormecidas,
topacios impíos como la verdad,
o toño en un claro del bosque en donde la luz canta en el hombro de un árbol y son pájaros todas las hojas,
playa que la mañana encuentra constelada de ojos,
cesta de frutos de fuego,
mentira que alimenta,
espejos de este mundo, puertas del más allá,
pulsación tranquila del mar a mediodía,
absoluto que parpadea,
páramo.
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E para não chegar ao fim num tom dolorido, com saudades de olhares longínquos, com a melancolia de amores perdidos uns dos outros, com a nostalgia de vozes que gostaríamos de ter perto de nós, vou lá acima trocar o Nocturno pelo Redemption e vou colocar as minhas palavras sob a copa das minhas tão amadas árvores que me abrigam quando estou in heaven.
Ou melhor: vou acabar a dançar. E vou buscar um dos tangos mais enternecedores e mais sedutores de que tenho memória. E com uns olhos que, na realidade, vêem mas que ali, não vendo a fingir, vêem mais do que todos os olhos que com ele deslizam no salão, a menina deslizando nos seus braços, rendida, transportada.
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Entretanto, por gentileza de um Leitor num comentário abaixo e a quem muito agradeço, recebi a indicação de aqui se consegue ouvir a crónica do Fernando Alves:
http://podcast.static.tsf.pt/sin_20190611.mp3
Talvez aqui não apareça o nónio... Cumprimentos
ResponderEliminarhttp://podcast.static.tsf.pt/sin_20190611.mp3
Li uma frase num livro de aforismos e poemas breves de Rabindranath Tagore (A Asa e a Luz) que me ficou na cabeça e de que agora, ao ler o seu post, me lembrei novamente: "Existem frestas na vida pelas quais passa a triste música da morte."
ResponderEliminarUm abraço,
JV
Há pessoas que podemos não conhecer pessoalmente, mas que, pela sua personalidade, pela sua atitude perante a vida, pela sua postura perante a política – pela sua tolerância democrática -, pela sua cultura, pela sua capacidade de transmitir afectividade, pela sua simpatia, pelo seu sorriso afável, pela empatia que transmitem, que, uma vez desaparecem das nossas vidas, como foi o caso de Rubens de Carvalho, nos deixam uma saudade imensa, magoada, cá por dentro. No PCP, Rubens de Carvalho era uma “espécie em vias de extinção”. A sua morte deixa não só um vazio no espectro político e cultural português, como, sobretudo, no PCP. Se calhar, quem sabe, o PCP só aproveitaria se soubesse retirar lições da postura de Rubens de Carvalho perante a política. E uma das suas grandes qualidades – que só os verdadeiros democratas possuem – foi o saber ser Tolerante.
ResponderEliminarOuvi, com grande deleite, inúmeras vezes, o programa Radicais Livres que ele entretinha com Jaime Nogueira Pinto. Seria, seguramente, impensável com outro dirigente do PCP. Mas, ali estavam aqueles dois homens, democratas, cultos, conversadores, tolerantes, numa conversa deliciosa e amena, a “divagar” sobre diversos tópicos, onde a Cultura acabava por ser o ponto mais marcante.
2. Entretanto, esta tarde fui “despedir-me” de um amigo. Um Amigo é algo de muito especial, que faz parte da alegria das nossas vidas, que nos acrescenta afectos, que nos faz rir, que nos dá apoio nos momentos mais difíceis, é alguém com podemos desabafar quando precisamos, com quem nos aconselhamos, com quem gostamos de partilhar os momentos e ocasiões, enfim, ter alguém amigo é algo extraordinário. E quando, de repente, perdemos alguém assim, alguém que teve um papel importante nas nossas relações, nos nossos afectos, nas nossas vivências, é quase como perder um braço. Eu hoje perdi um.
E uma lágrima vertida por um amigo é uma lágrima que não se perde. É um sentimento que se exprime. Que sai de dentro de nós. A par de uma profunda amargura. A vida é assim. Composta por alegrias e tristezas. Amanhã irei recordá-lo através dos bons momentos que passámos juntos. Hoje, acho que tenho o direito a estar triste.
(UJM, desculpe-me este desabafar, mas fez-me bem à alma,
P.Rufino)
Olá Anónimo/a
ResponderEliminarMuuuuiiiiiiito obrigada! Já coloquei o link no fim do post e, claro, já estive, de gosto, a ouvir. Muito bonito, não é?
Agradeço-lhe.
Como quem responde...
Eliminarhttp://podcast.static.tsf.pt/sin_20190618.mp3
Aproveito para a felicitar pelos seus belos textos.
Olá JV,
ResponderEliminarEspero que já esteja restabelecida do seu tornozelo e já consiga dançar em pontas ou jogar à bola na praia.
E que frase tão bonita essa de que se lembrou. E é mesmo isso, tal e qual.
Não gostamos de sentir essa música gelada, entristece-nos. Mas não há vida sem morte, sejamos objectivos. Há culturas em que a morte é celebrada como uma libertação pelo que a família e amigos festejam com danças e cantares. Acho isso inteligente. Mas distante da nossa cultura.
Muito obrigada pelas palavras evocadas.
Abraço, JV.
Olá P. Rufino,
ResponderEliminarSinto o peso da sua tristeza. Perder um amigo é uma coisa dolorosa. Não há muitos meses, no início deste ano, perdi uma amiga. Tinha estado doente há anos e, aparentemente, tinha ficado boa. Tinha estado a falar com o marido uma semana antes e disse-me que estavam bons, falou dela, dos filhos, tudo bom, combinámos coisas. Dias depois telefonou-me a dizer que ela estava muito mal. Eu nem percebi. E ele mostrou também não perceber como tinha sido possível. Nos últimos dias, ela estava cansada e sem apetite e ele relacionou com o período das festas, sempre uma canseira. No hospital percebeu que ela tinha escondido que estava mal, que tinha dores. Ele pensa que ela devia medicar-se, que quis poupá-lo. No dia seguinte a ter-me ligado a dizer que ela estava mal, ligou-me a dizer que tinha morrido. Eu sem perceber de todo, ele também ainda incrédula. E ainda agora me parece tão impossível.
Falei várias vezes dela aqui no blog. Era tão divertida, maliciosa, brejeira. Muito faladora, sempre animada. Custa-me ainda a acreditar que já não está entre nós.
Mas é aquilo que sempre se diz: a vida continua.
Receba um abraço solidário, P. Rufino.
Estes acontecimentos fazem-me sempre levar este filme - um dos meus preferidos:
ResponderEliminarhttps://youtu.be/lXXiJDpQ8ZU
Olá Paulo,
ResponderEliminarNunca vi esse filme e fiquei muito curiosa. E esta cena é tocante. Muito obrigada.
E curioso este seu comentário quando acabo de ler o fantástico livro de Gabriel Garcia Márquez 'Relato de um Náufrago', um grande livro.
Abraço, Paulo.
Ali em cima, seria lembrar e não levar (isto de escrever no telemóvel...).
EliminarGosto muito desse filme e tenho muito boas recordações de quando o vi a primeira vez (uma daquelas salas de cinema clássicas, parada no tempo desde os anos 70 e que fechou um ano ou dois depois, onde me iniciei no cinema um bocadinho mais fora dos circuitos comerciais e nos clássicos).
O filme está até completo no YouTube: https://youtu.be/NTUxP2IQEoE
Tem uma banda sonora magnífica, do Neil Young à guitarra.
Do garcia marques só li as memórias das minhas putas tristes e a única coisa que me lembro é que na altura não me despertou. Mas eu sou muito assim nas leituras. É o livro que me escolhe em cada momento. E não desperta hoje mas depois desperta amanhã. Entre leituras mais científicas (de física,'computação, economia,...), de história, etc ando aqui com o 2666 do bolaño e o para sempre do Vergílio Ferreira. Ainda nenhum me agarrou aquele ponto da obsessão, mas estou a gostar.
Abraço. Boa sexta-feira.
Olá Paulo,
ResponderEliminarPermita-me que lhe recomende do Gabo este que acabei de ler no outro dia, 'Relato de um náufrago'. E a seguir delicie-se com 'Amor nos tempos de cólera'. Vai ver que fica agarrado a ponto de obsessão.
Física + computação + economia = futuro.
Agarre-o, Paulo.
Um bom domingo.
Olá Anónimo,
ResponderEliminarComo quem responde, escrevi um post de propósito:
(https://umjeitomanso.blogspot.com/2019/06/gestos-essa-arquitectura-do-nada.html).
De propósito... ou a propósito?
E, que, nem de propósito, aproveito para muito lhe agradecer pela lembrança, pela simpatia das palavras.