Está a dar o Lolita do Kubrick na 2. A sala está quentinha. A lenha arde na salamandra e deixa um perfume bom. Está-se bem.
O meu dia de férias, que veio no seguimento do fim de semana, foi supimpa. Serrei ramos de azinheira, uma madeira rija que só visto. Às vezes, a meio, tenho que parar, respirar fundo, descansar, pois parece que me faltam as forças. Em comentário ao post anterior, Leitor simpático fez uma pergunta muito oportuna: porque não compramos uma serra eléctrica? Pois, tem razão. Já temos, sim senhor. Mas, por motivo que me transcende, solta-se-lhe a corrente. Já a pusemos vezes sem conta. Deve ser problema nosso, falta de jeito. Mas também não estou a ver se, para este fim, seria uma boa solução. É que, ainda assim, aquilo é pesado. Estar a subir muros ou rocha para chegar lá acima e com uma serra eléctrica nas mãos não sei se seria grande ideia. Numa escada, então, nem pensar. Aliás, não me afoito a ir para a escada, dá-me medo de cair. O que resulta comigo é o serrote que o meu filho ofereceu ao pai pelo Natal, um serrote com um cabo gigante. Ao princípio não me ajeitava, mas agora sim, já aprendi a dirigir a força. Vamos ter que arranjar maneira de pôr a serra a trabalhar é para serrar os troncos grandes em troncos pequenos para caberem na lareira ou na salamandra, à mão será impensável.
Também apanhei folhas, bolotas e restinhos de tudo o que há misturados com terra. Carrinhos e carrinhos de mão cheios. Um amigo falou-me num aspirador que é uma maravilha para isto. Depois, um dia, enviou-me uma sms a dizer que estava em promoção no Leroy. O meu marido achava que, para o fim em vista, aquilo era uma treta, que não ia servir para nada; mas, como geralmente quem varre sou eu, acabou por me fazer a vontade. Mas, na verdade, tenho que confessar, ele estava certo: aquilo revelou ser um fiasco. Se calhar é bom para coisinha ligeira e miúda, folhinha cosmopolita em jardim de cidade. Aqui entupiu vezes sem conta. As folhas de nespereira, as folhas de plátano, a folhagem húmida pela chuvinha da noite, tudo se compacta a meio do tubo e, pronto, caldo entornado. Desentupi uma dúzia de vezes até que desisti e regredi: voltei ao ancinho, pá de pedreiro, vassoura de arame.
Com tanto que trabalho dá-me calor e acabo de top de alcinha fina e calcinha à pirata. Não há frio que me chegue. Mais um pouco e punha-me de fato de banho. Mas, como sempre, acabo arranhada de uma ponta a outra. É que, no meio da faina, o corpo enrijecido, nem dou por ela. Quando, ao fim da jorna, tomo banho e me vejo, é que constato a linda figura em que estou. O meu marido arrelia-se mas apenas moderadamente porque já desistiu de me educar. Ele, em contrapartida, anda de jeans, manga comprida, luvas e, quando anda com a roçadora, põe protecção nas pernas e óculos. Trabalha como um camponês mas sai de cá sem uma beliscadura. E eu nisto: parece que fui martirizada. Mas, enfim, não me queixo. Só me incomoda um bocado é ver as pessoas que não estão muito por dentro da minha intimidade, a olhar de soslaio para o estado dos meus braços e mãos. Felizmente não vêem as pernas ou as costas. Devem ficar intrigadas, sem perceber se caí dentro de um saco de gatos ou se andei perdida numa floresta virgem, a passar por entre silvas e heras cheias de espinhos.
O meu marido também teve mais um dia daqueles... Andou à cata de tojo, um tojo agora completamente viçoso e cheio de florzinhas mimosas e espinhos maléficos, cortou ramos mais grossos ou mais acima nas árvores grandes onde eu não consigo chegar (que isto de desramar árvores até aos quatro metros é obra), transportou-os, limpou mato rasteiro com a roçadora, sei lá. Há bocado disse que não sabia onde tinha a cabeça quando tirou um dia de férias.
Depois de almoço, e já eram quase três da tarde, viemos recostar-nos no sofá. Eu, por via das dúvidas, tapei-me com uma mantinha. Pois só vos digo que, tal o estado em que estávamos, adormecemos e só acordámos às cinco. Nem queríamos acreditar que já era aquela hora. Mas depois andámos, de novo, na lida até já ser noite. Gosto de andar na penumbra, entre sombras misteriosas, junto ao vulto das minhas amadas árvores, a trabalhar ao relento, a humidade nocturna a fazer-se sentir sobre a pele.
Com isto tudo, ainda não peguei no tapete de arraiolos e mal tenho lido. Tirando esta jardinagem campestre, praticamente só tenho cozinhado. Também tenho feito algumas fotografias mas agora estou com uma tremenda preguiça, não me apetece ir buscar a máquina para escolher algumas para aqui. Mas o mais extraordinário é que gosto disto. O cheiro a madeira cortada, a erva ceifada, o perfume das flores, as cores do dia, o silêncio apenas entrecortado pelo canto dos pássaros ou por um sino ao longe, tudo me traz uma tal sensação de bem estar e felicidade, uma tal serenidade, que todo o trabalho braçal que faço me sabe a coisa boa, a festa, a vida a sério.
A minha mãe insiste: vocês não têm vida para isso, deviam arranjar um caseiro. Não é a única a dizer isso. Outras pessoas que conheço, que têm uma vida na cidade e casas no campo, têm quem as ajude. Ao princípio também tínhamos, um senhor da aldeia. Ao fim de semana vinha reportar o que tinha feito durante a semana. Passávamo-nos: nós a queremos descansar e ele a querer que o ouvíssemos. Outras coisas, fazia questão de as fazer connosco ao pé. Desesperávamos. Felizmente foi ficando velhote e disse-nos que, se não levássemos a mal, deixava de cá ir cuidar das nossas coisas. Foi uma libertação.
Isto pode ser pesado -- e é, porque é muito intensivo, porque temos pouco tempo disponível para tanta coisa para fazer -- mas é um prazer, um grande, grande prazer.
(Há malucos para tudo).
(Há malucos para tudo).
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As ilustrações são de Rafael Silveira e vêm ao som de Passenger com New Until It's Old
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A todos desejo uma boa terça-feira, de Carnaval ou do que quiserem
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E vivam os prazeres do hard work.
ResponderEliminarUm rico dia.
Thanks Francisco. Estou de volta às soft skills e ao verdadeiro hard work.
ResponderEliminarDias felizes para si, Francisco