quarta-feira, novembro 21, 2018

Ver as coisas muito de cima






O dia foi completo e supostamente cheio de coisas importantes e, supostamente também, deveria achar que fui bem sucedida em toda a linha. Tinha visto no outro dia o meu horóscopo (coisa cuja validade sou incapaz de defender mas que, incongruente como sou, quando me lembro gosto de ler) e lá dizia que a minha assertividade e segurança tornava imbatíveis os meus argumentos pelo que poderia estar certa de que faria o que quisesse. Registei mas não liguei. Mesmo que fosse alguém de verdade a dizer-mo não ligaria. Desde que me lembro que penso pela minha cabeça e sou imune, talvez quase a 100% a conversinhas da treta, a lisonjas ou a considerações sobre mim, por muito abonatórias que sejam. Sou como sou por natureza e, na parte que não é genética, tento melhorar-me, desapegando-me de superficialidades. Quanto à parte genética, é o que é. Mas acho graça a ver como isto dos horóscopos bate muitas vezes certo.

Mas isto para dizer que, se há alturas em que tentam empurrar-me para onde não quero ou tentam obrigar-me a alinhar-me relativamente a coisas em que não acredito nem pintadas, outras há em que parece que tudo flui.


Mas, sobretudo, há uma coisa: cada vez mais sinto que vejo as coisas from the balcony, como se não fossem comigo ou como se eu não fosse de cá, como se, simultaneamente, eu fosse também uma mera observadora, como se fosse isenta porque independente a relação a quase tudo. Claro que se me saísse o euromilhões ainda conseguiria distanciar-me mais.

Tive um colega, inteligente e mui nobre pessoa, mas nobre de nobreza mesmo, pessoa com verdadeiro pedigree, que ganhou o respeito dos demais porque tudo o que dizia era acertado e corajoso. E por não estar nem aí. Mas tão descarado era que se posicionou verdadeiramente acima da carne seca. Entrava e saía às horas que lhe apetecia, a meio das reuniões levantava-se e punha-se a andar à volta da mesa ou ia para a janela, de mãos nos bolsos, na maior descontra. Chegava a andar a cirandar à nossa volta a assobiar baixinho. As coisas que ele fazia... As pessoas sorriam ao de leve ou já nem ligavam. Era como se jogasse noutro campeonato.

Gostava imenso de conversar com ele. Era um espírito livre.


Casou em segundas núpcias com uma mulher da idade da filha mais nova. E, para cúmulo do inesperado, teve um filho com ela. O filho, da idade dos netos -- e tinha nem sei quantos --, era lindo e fazia o que queria, coisa que ele observava com admiração e, também aí, com distanciamento. Fiquei para morrer quando, uma vez, por exemplo, me disse: 'O tipo é maluco, só gosta de brincar com berbequins'. Não quis acreditar: 'Mas quê? De brincar? A pilhas?'. E ele, a rir, 'Não, o tipo gosta é de brincar com berbequins a sério, ligados à corrente'. E ria. A criança, na altura, tinha cinco anos.

Mas, portanto, dizia eu, não estou como ele, que isso é quase impossível, mas também a ficar quase desaforada, dizendo de frente o que me parece adequado, mesmo que deixe os outros a olharem para mim, provavelmente a pensarem que é preciso lata para dizer coisas daquelas.


Mas, agora que escrevi isto, lembrei-me de uma vez, quando tinha reuniões num dos mais bonitos palacetes da cidade, numa sala enorme
-- uma sala requintadamente mobilada, com óleos enormes e imperiais, jarrões gigantes, candeeiros lindos, em volta de uma mesa gigante.
Estaríamos umas quinze pessoas, eu e uns catorze homens. À cabeceira uma ilustre criatura, pessoa delicada, educadíssima, daquelas que bebia chá já no ventre maderno, notoriamente não nascido para murros na mesa ou para contrariar quem quer que fosse. À volta, um bando de gente opiniosa. O dito cavalheiro da cabeceira, distinto e educadíssimo, tinha contratado um consultor que tentasse perceber o que queríamos, sendo que cada um de nós queria sua coisa e que ele não percebia nada nem do dizíamos nem da matéria sobre a qual falávamos. A coisa resultava em reuniões que duravam horas. Uma canseira. Ele não conseguia ter mão em nós.O consultor estava a receber verba avultada pelo que, embora se passasse com aquela cegada de reuniões, aguentava calado porque o dinheiro lhe devia saber bem ou fazer falta. Mas as nossas divergências eram exposta com civismo, boa educação, sem elevações de voz. Horas de conversa educada, redonda, inconsequente, contraditória.


Até que um dia, para espanto de todos, de forma completamente inusitada, numa daquelas longas e suaves discussões, o dito consultor afastou a cadeira da mesa, deu uma palmada com toda a força na mesa e, num berro, disse: 'Porra! Porra para isto! Mas não há quem mande aqui?!' e zás pás trás,, levantou-se à bruta e disse: 'Demito-me. Estou farto disto.'. Pegou nos papéis que tinha dentro da sua pasta, despejou-os na mesa, afastou a cadeira e saíu de rompante, batendo (literalmente) com a porta. Ficámos todos zonzos, em especial a homem refinado e discreto que se sentava à cabeceira que, lembro-me ainda muito bem, ficou corado até à raiz dos cabelos. Nunca tal sala tinha presenciado tamanha brutidão. E nós também não.

Depois de uns instantes de pasmo, recompusemo-nos e a reunião prosseguiu como se nada se tivesse passado. Até hoje nunca mais ouvi, alguma vez, comentar tão insólito acontecimento. Mas eu lembro-me muitas vezes disso e penso que era bem metido se eu me saísse com uma daquelas.


Mas, enfim, nada disso agora vem ao caso. O que vem é que continuo apaixonada por esta arte de fazer tapetes de arraiolos. Agora, mal aqui chego, atiro-me a ele. E, quando acabo, estendo-o no chão para ver o avanço. Ontem à noite reparei numa coisa chata: há um lado cujo fundo da barra está por preencher. Como é em amarelo seco, parecido com a cor da juta, tinha-me parecido que estava feito. Hoje antes de sair de casa, apesar de apertada no horário, fui buscar a escadinha e fui empoleirar-me para descobrir onde parava aquele amarelo. E achei. Mas agora fiquei na dúvida se era a mesma cor. Com luz artificial não dá para arriscar. Por isso, continuei com o azul escuro do fundo. 

E tanto gosto de aqui estar entretida a fazê-lo que tive que me forçar a parar para escrever estas coisas de nada. Mas não interessa. Se isto é um pro memoria, que fique registado o prazer que sinto por ter voltado a esta minha faena.

E o resto, cenas que vi aprovadas, posições que deixei claras e outras coisas altamente importantes, são coisa nenhuma quando comparadas com os avanços que vou dando ao meu tapete.


Tirando isso, lamento os acidentes, as forces majeures, os actos de deus, as loucuras dos homens, a tristeza que veste o olhar de algumas pessoas, os infortúnios irremediáveis, os amores para sempre incumpridos, as palavras que morrem antes de ser ditas, as doenças, os mal entendidos, as descrenças infelizes. E tudo o mais. Mas o meu ser é insignificante demais para poder guardar todos os males do mundo. Portanto, contento-me com as coisas simples. E, se as vir de cima, ainda mais perfeitas me parecem.

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Talvez por isso, resolvi usar, para intercalar no texto, fotografias que mostram a Terra vista de cima. São lindas, abstractas. Caso também gostem de se sentir deslumbrados vejam o Daily Overview

A música que escolhi acho que não tem nada a ver. Apenas gosto dela. Aliás, gosto bastante de ouvir o Marlon Williams.

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