terça-feira, outubro 02, 2018

Charles e Ulla, cinquenta anos de amor




Gostei de saber que Aznavour viveu um amor eterno. Sempre gostei muito das suas interpretações mas nada sabia da sua vida. Nem tinha que saber. A sua voz e a simpatia da sua presença era o que bastava. O conhecimento da vida concreta daqueles cuja obra admiramos pode distrair-nos do que importa. Tendemos a incomodar-nos com o lado humano dos que queremos quase divinos, perfeitos, isentos de pecado, de mácula. Exigimos demais daqueles a quem deveríamos amar sem condições. Por isso, não procuro conhecer as intimidades daqueles a quem admiro.


Mas agora, ao ler a notícia, fiquei a saber deste seu amor e gostei de saber. Chama-se Ulla e foi a sua terceira mulher. Dizia ele que quando conheceu a primeira era muito novo, quando conheceu a segunda era muito parvo mas que, quando conheceu a terceira, ela o pôs nos carris, o ensinou a ser tolerante e melhor pessoa. Com ela ficou até ao fim.

Era bem mais nova que ele, bem mais alta que ele, bem mais loura que ele. De outra cultura, de outro mundo. Mas a sua maneira de ser prendeu-o para sempre. Tiveram três filhos. Envelheceram juntos. Ver as suas fotografias emocionou-me. Eram jovens. Sorriam de amor. No fim, a idade tinha pousado sobre os seus corpos mas mantinham o mesmo sorriso gaiato e cúmplice de jovens apaixonados. 


Quando o amor é assim -- laço e vício, perdição e refúgio -- ele é terno e forte, resistente ao tempo, resistente aos embates e aos vendavais. Podem decorrer mil anos que sempre o vazio será preenchido pela memória e pela reinvenção de um amor que resistirá a tudo, a todos.

Ele dizia que, contra a vontade dela, não queria reformar-se. Deu uma entrevista uns dias antes de partir. Estava bem, irónico, sorrindo ao futuro. Certamente Ulla estaria à sua espera para, de braço dado, regressarem a casa. Assim são os amantes eternos. Sabem esperar um pelo outro, sabem aceitar as diferenças, sabem acolher os sonhos e os desejos do outro, amparam-se e defendem-se da morte .


Ulla Thorsell, a bela sueca, agora viúva, tem agora setenta e sete anos e, imagino, uma tristeza e uma solidão que não serão fáceis de ultrapassar. Sempre quis ter uma vida normal, longe dos holofotes. O seu galã, que ela já queria longe do palco, partiu para um espectáculo no outro lado do mundo.

Continuaremos a ouvi-lo. Felizmente há as gravações, os vídeos. Quantas vezes nada fica senão um sorriso numa memória que se vai desvanecendo? Uma carta quase rasgada de tantas vezes lida? Ou nem isso? Talvez apenas a recordação de um encontro distante num lugar tão improvável quanto miraculoso. E, no entanto, de um ténue fiapo de lembrança se pode alimentar toda uma vida.


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Los amantes rendidos se miran y se tocan
una vez más antes de oler el día.


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6 comentários:

  1. "Por isso procuro não conhecer a intimidade daqueles que admiro".
    Ah, sempre contraditória...
    Então porque gosta tanto de ler biografias, cartas, diáros?
    Eu não sabia nada do Aznavour e gostei de saber (agora por si) que ele foi muito feliz, gostei mesmo.
    Obrigada por isso e também pelo Cortázar (do qual apenas sei que gostava muito de gatos).
    "Que c'est triste Venise" e "She" são as minhas favoritas do Aznavour.
    Beijinho
    Maria
    ps: para evitar confusões de nomes, agora assino Maria que, como sabe, é o meu primeiro nome.

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  2. De todas as homenagens feitas ao cantor, que nos deixou ontem, esta é a que mais me falou ao coração. Sabe porquê, UJM? Porque foi com um Amor assim, que durasse uma vida, que fosse eterno, que sonhei toda a minha vida...
    Bem haja, por me ter dado a conhecer essa parte da vida de Aznavour, que eu desconhecia.

    Paz à sua Alma!

    Um abraço e o meu sincero apreço.

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  3. "Mais quelque chose manquait
    Qu'ils ne pouvaient expliquer
    Et c'était toi liberté des beaux jours
    Avec une rose au chapeau
    Bien plus jolie qu'un drapeau"
    Aah!
    Abraço
    JV

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  4. Olá Maria,

    Essa da minha contradição está bem achada, sim senhora. Até fiquei a pensar. Mas é que há uma nuance. Quando leio diários, correspondências e coisas assim é mesmo pelo género literário. Gosto. Não procuro contradições ;), não procuro a partir do que leio interpretar o que li ou vi ou ouvi noutro contexto. Não sei se me faço entender. Por exemplo, gosto muito de ler entrevistas ou diários com pintores mas é em geral, gosto de perceber, em abstracto, como pensam os pintores. Não me interessa em particular perceber pelas respostas de cada um como é que isso explica a obra. Não. Para mim são coisas dissociadas. Por exemplo, ao ler os Diários da Virginia Woolf gosto de ler porque estão bem escritos, gosto da ironia, da inteligência. Mas podia ter sido escrito por outra pessoa qualquer porque não estou a lê-los para conhecer melhor a autora de Orlando ou As ondas.

    Por exemplo, Charles Aznavour é um grande, grande senhor da música e gostamos dele pela forma como cantava, como se apresentava em palco e isso é completamente independente de nós sabermos se foi casado uma ou duas ou três vezes ou se a mulher é mais nova ou velha que ele. Isso é, para nós (pelo menos para mim é), apenas um fait divers que talvez nos faça enternecer.

    Dias felizes para si, Maria.

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  5. Olá Janita!

    Posso dizer uma coisa...? Não procure um amor eterno. Isso não existe. O amor não pode nunca ser um dado adquirido, não é coisa que a gente contrate, como se fosse um serviço. Tem que ser um dia de cada vez e amanhã logo se vê. Pode acontecer que vá durando. Mas tem que ser nessa base. Tem que ser espontâneo, voluntário, autêntico... e ser bom, fazer-nos sentir bem. Não é coisa que se procure. É coisa que, a gente estando disponível, encontra.

    Claro que isto sou eu que digo, não é coisa que esteja na Bíblia ou na Constituição.

    Um abraço, Janita! E viva la vida!

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  6. Aah, JV!

    Belas palavras as que escolheu. La Liberté! Sempre me surpreendo consigo, JV. Tão jovem e já tão conhecedora e com um gosto tão refinado, tão 'adulto'. Perfeito. Até fui ouvir a canção.

    Muito bem. Muito obrigada, JV.

    Abração!

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