segunda-feira, setembro 10, 2018

O querido numen que habita in heaven






Os meninos dormem toda a noite. Uma sorte. E eu a noite passada também dormi bem. E o bebé acordou com um apetite que me pôs logo contente. Para o pequeno-almoço, os manos tiveram ovo mexido, pão com queijo, acompanhado, no caso do mano do meio, com um copo de leite frio e, no dela, com um iogurte (até nisso é parecida comigo: por ela, comia vários por dia). Pois o bebé comeu um bocado de ovo mexido, depois uma tigela de nestum e depois ainda comeu o pão que sobrou de um dos manos. Entretanto, algum tempo depois, viu o avô a comer uma bolacha de aveia tufada com algas e também quis, pelo que comeu um pouco. A satisfação que me dá entregá-los a todos bem alimentados ninguém imagina.

Depois lavaram-se, vestiram-se, pentearam-se e foram brincar enquanto os pais não os foram buscar.


Quando saíram, já eu estava cheia de saudades. O meu marido disse: olha a diferença. E era. O silêncio. A casa, de repente, ficou silenciosa. Durante uma porção de tempo andámos a arrumar, a apanhar coisinhas do chão, a acasalar pecinhas de jogos, a pôr tampas em canetas. Depois fiz uma máquina de roupa e o meu marido pôs a secar.

A seguir, voltámos a pegar em armas e bagagens e ala moço que se fazia tarde. Campo. Claro que no carro aconteceu-me aquilo que acontece aos bebés: ao fim de pouco tempo, estava a dormir. Acordei  logo a seguir, quando o meu marido parou para abastecer. E viémos a relembrar coisas deles: a assertividade dela, a malandrice do mano do meio, a teimosia do bebé, a graça de todos.

Quando liguei para a minha mãe, ela perguntou se já estávamos a caminho e disse que devíamos arranjar um helicóptero. E é. Dava jeito.


Quando chegámos aqui ao campo, a casa estava como a tínhamos deixado na sexta à tarde, quando de cá tínhamos saído com os três meninos. Num instante, pusemo-nos a arrumar e limpar e, mal acabei, deitei-me no sofá, com um livro, pensando que dava para descansar por uns minutos. O meu marido lembrou-me que tinha a máquina cheia de lençóis, que podia pô-la a lavar. Eu respondi-lhe que nem pensar, que ficava para depois, que precisava de pousar por um bocado e que, para mais, eles não deviam tardar. Pois, nesse preciso instante, ouvimos apitar. Era a minha filha, a chegar com os meninos. E pronto.

Grandes, grandes. Posso passar dois ou três dias sem os ver que, quando os revejo, já lhes noto diferença. O mais velho caminha a passos largos para, não tarda, estar da minha altura.

Estivemos a apanhar sol, a ler, a conversar, a apanhar figos, os meninos a treparem às árvores, a implicarem um com o outro, a serem amigos como se nada fosse. E fomos ver a casa de troncos que o tio fez e fomos passear e, ao fim do dia, jantámos e claro que é sempre uma boa disposição. São uns brincalhões, sempre muito bem dispostos, com um fantástico sentido de humor. Farto-me de rir com eles.

Depois foram cedo porque esta segunda-feira é dia de escola.

Quando nos vimos aqui na sala, só os dois, o meu marido disse que já sentia falta de ter que fazer alguma coisa. E eu fiquei numa inércia total, incapaz de ter acção para fazer o que quer que fosse. O meu marido ainda disse: temos que resolver se vamos a algum lado. Mas pode ser que amanhã eu consiga pensar se quero voltar a fazer a mala e pôr-me a caminho para algum destino ou se quero é deixar-me aqui ficar a descansar. A minha filha esteve a sugerir um lugar muito bonito onde esteve recentemente mas ainda não consigo pensar.


E eu, aqui sossegada, a televisão a dar nem sei bem o quê, finalmente consegui disponibilidade para passar as fotografias da máquina, para as ver, para escolher algumas para aqui ilustrar o que têm sido estes dias felizes. Como se vê, apanhámos bom tempo e assim-assim, estivemos no campo e na cidade, na rua e dentro de casa. Claro que as fotografias mais bonitas são aquelas em que se vêem os seus rostinhos lindos e felizes da vida. Mas como não os quero aqui ter à vista, vejo-me condicionada a escolher aquelas em que estão de costas ou de lado. Como é bom de ver, quando os fotografo, quero 'apanhá-los' no melhor ângulo e, portanto, são poucas as fotografias em que estão com os rostos ocultos. Não interessa. Dá para dar uma ideia de como desfrutam bem este seu tempo mágico da infância. E, para mim, é um prazer vê-los e um privilégio assistir ao seu crescimento.

Entretanto, vi no mail da empresa que esta segunda-feira há uma big reunião de dia inteiro fora de Lisboa e só me apeteceu benzer-me por estar de férias e não ter que madrugar para passar um dia inteiro numa cena que, para mim, ia ser um castigo. Cá para mim, fizeram de propósito e tenho que agradecer a amabilidade porque o meu colega que convocou a reunião, conhecendo-me bem como me conhece, sabia bem que, se eu lá estivesse, a coisa corria sérios riscos de não correr especialmente bem. Portanto, acho que isto de ter férias na altura em que as empresas fazem a rentrée é uma grande ideia.


E, assim sendo, enquanto os outros estiverem fechados numa sala a aprender uma coisa que deveriam ter nos genes e, se não têm, também não é com coisas daquelas que lá vão, eu vou estar numa espreguiçadeira ao solinho ou à sombrinha, a ler, ou vou estar a passear sobre a caruma perfumada, ou a apanhar figos, e a preguiçar, a deixar-me dormir ao ar livre, a ouvir os passarinhos, a sentir o perfume das árvores.

Para mais, estou com três livros em simultâneo e qualquer deles me enche de prazer: os Diários da Virginia Woolf, o Solte os Cachorros da Adélia Prado e o Embalando a minha biblioteca de Alberto Manguel.

Que mais se pode querer de umas férias?

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Sempre que deambulávamos pelo jardim, dizíamos que éramos os seus guardiões, nunca os seus donos, porque (como em todos os jardins) o sítio parecia-nos possuído por um espírito independente, aquilo a que os antigos chamavam numen. Numa explicação acerca da numinosidade dos jardins, Plínio diz que ela acontece porque, outrora, as árvores foram os templos dos deuses e que os deuses jamais o tinham esquecido.



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Tinha nas prateleiras dezenas de livros muito maus de que não me desfiz, não fosse dar-se o caso de alguma vez precisar do exemplo de um livro que eu julgasse mau. Balzac, n'O Primo Pons, avança uma justificação para este comportamento obsessivo: "Uma obsessão é um prazer que atingiu o estatuto de ideia."

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A itálico, dois pequenos excertos de 'Embalando a minha biblioteca' de Alberto Manguel

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