quarta-feira, julho 04, 2018

Um certo killer instinct, confesso




Maldade. Maldade. - acuso-me eu. 

Não, não me acuso nada. Acho que foi é pouco.

Se alguma vez pensaram que ando para aqui a fazer o género da boazinha, corrijo. Zero. Boazinha, coisa nenhuma. Má, má. Basta que me chegue a mosca ao nariz. A mosca? Não me soa bem. Acho que não é mosca, é capaz de ser a mostarda. Como diria a fabulosa Gina: uótéva.

Chegou. A mosca ou a mostarda. Ao nariz. Melhor: chegou a mostarda com uma mosca a cavalo. Ao nariz.

Andava para me passar. Sabia que era inevitável. Degrau a degrau. A coisa iria, irremediavelmente, dar-se. Sentia-o de certeza absoluta. Eu não teria que fazer nada. Seria ele a pôr-se na linha de tiro. Seria ele a pôr a cabeça no lugar do alvo. Eu sem ter que fazer nada. Apenas esperar.

A temperatura a subir, a subir, e eu a pensar: estás a pedi-las. Mas o meu lado de bom coração tolhia-me os maus ímpetos. Odeio quando estou pronta para tirar a faca da liga e o meu bom e sweet heart me aparece, ronceiro, sonso, a desarmar-me. Mas não era por caridade para com ele, era por precaução para comigo. Pensava: cuidado, ainda te vais meter numa alheira. Também não me soa bem. Talvez seja alhada. Ou vinha de alhos. (Uoteva agueine, diria a Gina).

Mas, no mais bas fond de moi-même, sabia que ele estava a caminhar a passos largos para o perigo. Farejo-o. Uma bebedeira de adrenalina. Killer instinct, they say. 

Pensava: há algures uma linha vermelha e estás quase a passá-la. Vá. Mais um passinho, vá. E todos os dias eu pensava: quente, quente. E agora que escrevo quente, quente lembro-me da brincadeira do lencinho queimado. Frio, frio como a água do rio. Mas sentia era que estava era cada vez mais morno. E, a cada dia, estava quase lá. Anda cá que és meu. Make my day, baby.

E ele sorria, satisfeito consigo próprio. Valentão, pensava eu. Mal sabes. E ele todo senhor de si, todo bem sucedido. Estás quase. Mais um passinho, meu, só mais um passinho.

Foi hoje. 

Nem me mexi. Ouvia a sua voz. Valentão. Ganhador. Chamava por mim. E eu a pensar: já estás. Já caíste. Imóvel, eu. Pensei. O tiro foi bem na testa, não matará mais criancinhas nos caminhos da floresta. Imóvel. Impassível, eu. Soprando o cano ainda fumegando do revólver.

Pouco depois, chegou. Vinha contente, sem perceber que já tinha caído no laço. Sem perceber que já era. Não deixei perceber nada. Fria. É tão fria que chega a assustar, disse-me uma vez um grande senhor conhecido por ser frio, muito frio. Assim estava eu, fria, disfarçada, ele na minha frente, gracejando -- e eu sentindo quase piedade da póstuma criatura.

Foi-se embora sem ter percebido. Ia contente, inocente. Todos os estúpidos são assim. Perigosos e inconscientes.

Pouco depois, saí eu. Tranquila.

Quando cheguei ao carro, fiz o telefonema fatal. Ao chegar à minha rua ainda o telefonema durava. Continuei no carro até as exéquias estarem completas. Coisa a preceito. Caprichei.

Cheguei a casa saciada. O valentão estava morto e enterrado.


Bem vistas as coisas, sou um anjo. 

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As fotografias são de Paolo Roversi. 
E, como quase sempre, qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.
Ou não.
Uoteva, né?

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