Tenho que dizer que há desaparecimentos que me pertubam muito. Repito-me: quando soube que Bernardo Sassetti tinha morrido fiquei quase em estado de choque. Estava a conduzir e não queria acreditar. Pouco tempo antes tinha-o visto no Largo. E ouvia-o muito. Não me parecia possível tal coisa, um absurdo que carecia de imediata correcção e, no entanto, percebia que tal seria impossível.
Tenho esta coisa: raramente me dou por vencida. Estou sempre a arranjar soluções. Talvez por isso estão sempre a procurar-me para me comunicarem problemas. Arranjo soluções. Canso-me de ser assim, canso-me de estarem sempre a trazer-me problemas. Mas, mesmo que involuntariamente, estou sempre a ver como resolver problemas.
Talvez também por isso algumas mortes me atormentam tanto.
Quando é declaradamente um suicídio ainda mais. Parece que algo de muito estúpido -- algo que facilmente poderia ter sido solucionado -- aconteceu de forma irreversível. Como se tivesse bastado alguém ter verbalizado o seu problema que logo a solução apareceria, limpinha -- e assim, agora, lamentavelmente já nada se pode fazer.
Quando é declaradamente um suicídio ainda mais. Parece que algo de muito estúpido -- algo que facilmente poderia ter sido solucionado -- aconteceu de forma irreversível. Como se tivesse bastado alguém ter verbalizado o seu problema que logo a solução apareceria, limpinha -- e assim, agora, lamentavelmente já nada se pode fazer.
Não sei se estou a explicar-me bem. Tenho dúvidas e essas dúvidas atormentatm-me: por exemplo, quem decide retirar-se da vida, fá-lo-ia feito no dia seguinte se, no dia trágico alguém tivesse conseguido demonstrar-lhe o absurdo da decisão? Ou seja, é uma vontade funda, sentida, irreversível ou apenas um cansaço grande, um afundar-se sem que ninguém perceba e deite a mão, um problema facilmente resolúvel?
Li que Bourdin se tinha enforcado e fiquei também em estado de choque. O meu marido, que não tem paciência para ver televisão, gostava muito de ver os programas dele. Por isso, habituei-me também a ver aquele personagem desconstruído, simpático, afável, displicente, culto, simpático, bad boy, politicamente pouco correcto. Havia nele aquela empatia imediata que o tornava tão querido e gentil. Uma pessoa assim, tão popular, merecendo tanto reconhecimento, como chega ao ponto de sentir que já não aguenta mais?
Foi o meu marido que o disse: estes tipos não param, esgotam-se no que fazem, têm que estar sempre a descobrir coisas novas, têm que estar sempre disponíveis. Chegam a um ponto que já não aguentam.
Não sei se foi isso Se calhar foi. Quando apenas olhamos o lado de fora das coisas, a gente só vê o que parece bom: viajar, conhecer tanta gente diferente, tantas coisas novas. Pensa-se: quem me dera.
E, no entanto, Bourdin disse que nunca estava perto de quem amava, que estava sempre a partir, que não podia criar laços. Olhava-se para ele e diríamos que isso não lhe fazia falta, andava sempre tão bem disposto, tão disponível para ser surpreendido, tão próximo daqueles com quem conversava, comia, bebia.
Ao jantar, eu estava a falar nisto. O meu marido disse, com ar levemente desagradado: agora vais ficar só a pensar nisto.
Confirmei: sim, faz-me impressão. Percebo que uma pessoa se sinta chegar ao ponto de saturação mas não consegue perceber que essa é a alturar para parar? Quem tem dificuldades económicas terá problemas em virar costas a uma vida que o esvazia mas uma pessoa com pecúlio considerável pode facilmente dizer: 'já chega, vou dedicar-me à jardinagem ou ao dolce fare niente'. Porque não o fez?
O meu marido disse: porque se perde a capacidade de parar. Parar, em situações assim, não é opção.
Será? Pensa-se que já não há mais surpresas depois da próxima curva? Que o corpo já não aguenta mais o cansaço de se mostrar sempre feliz? E, no entanto, continua-se incessantemente fingindo que ainda se acredita que os dias que vêm são melhores dos que acabam numa noite solitária? Será?
Até que, uma dessas noites, é a última. Um ponto final.
Até que, uma dessas noites, é a última. Um ponto final.
Li que Bourdin teve um passado de dificuldades, de drogas, de dinheiros curtos, de medos. E que, depois, a sua vida mudou, vindo a tornar-se a estrela que conhecemos. Nunca escondeu as agruras, os deslizes, os sustos. Faziam parte da sua vida e de tudo isso falava com frontalidade. Não terá sido isso que o puxou para a negritude.
Mas talvez não tenha querido jogar-se no inferno mas, sim, libertar-se em direcção à luz.
Quando alguém morre assim, de forma inesperada, fico com a curiosidade -- que sei que é mórbida -- de ver fotografias feitas pouco antes. Ou palavras ditas pouco antes. Quero perceber se teria sido possível descobrir a sombra que, se calhar, já pairava sobre a alma de quem estava prestes a partir. Alguma marca de tristeza que estava bem ali e em que ninguém reparava, algum rasgão que estivesse oculto na esquina de alguma palavra.
No fundo, acho que tenho necessidade de perceber se, estando atento, é possível perceber que o vínculo à vida está prestes a quebrar-se ou se isso acontece de súbito, de forma inelutável.
Seremos todos responsáveis? Será que o nosso apreço tolhe a alma de quem se sente aprisionado por tanta estima? O peso do amor ou da fama ou da responsabilidade em agradar torna muito frágeis aqueles que amamos demais?
Há explicação para mortes assim? Haverá forma de alguém as evitar? Ou não?
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As fotografias que usei foram feitas ao fim do dia na praia
Divna Ljubojevic interpreta Polyeleos
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As fotografias que usei foram feitas ao fim do dia na praia
Divna Ljubojevic interpreta Polyeleos
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Boas!
ResponderEliminarPrimeiro que tudo tenho de referir que acho absolutamente deliciosa esta moderna forma de censura!
Digna do século XXI... "moderação de comentários" hilariante!
Quanto ao bacano que LIVREMENTE E RESPONSAVELMENTE decidiu terminar a sua existência nesta fantástica civilização... ele apenas fez o que apeteceu fazer.
Exerceu o seu único real DIREITO: terminar a sua existência quando bem entender! O "porquê" não interessa para nada.