Vejo com estupefacção os vídeos dos interrogatórios a que Sócrates, Ricardo Salgado, Zeinal Bava, Granadeiro, Bataglia e outros foram sujeitos no âmbito do Caso Marquês. Supostamente as gravações seriam feitas para apoio não sei a quê -- e espero que os arguidos tivessem sido informados de que as gravações estavam a acontecer -- e não para ser passadas em horário nobre numa televisão generalista.
E, no entanto, imagens colhidas e armazenadas à guarda da Justiça foram parar à SIC e são agora pasto atirado para a praça pública.
Tal o estado de bandalheira a que a Justiça chegou em Portugal que isto já se faz a céu aberto, sem receio das consequências.
Estamos a falar de pessoas que ainda não foram julgadas, muito menos condenadas. Até prova em contrário são inocentes.
E, no entanto, sem rebuço, a equipa de algozes da SIC dá-se ao desfrute de os expor em momentos melindrosos da sua vida.
Pensei: mas será que, lá por o processo já não estar em segredo de justiça, já é material que por aí ande a pontapé?
Pois bem: não. Leio agora que
"Embora o processo em causa já não se encontre em Segredo de Justiça, a divulgação destes registos está proibida, nos termos do art.º 88º n.º 2 do Código de Processo Penal, incorrendo, quem assim proceder, num crime de desobediência (artigo 348.º do Código Penal)", refere o Ministério Público numa resposta a uma questão da Lusa.
O Ministério Público acrescentou que instaurou um inquérito para "investigar os referidos factos".
Espantoso. Apesar da divulgação estar proibida, a SIC fá-lo na maior descontracção. Mais: faz disso um festival. Um julgamento, sem contraditório, na praça pública.
Ouço os jornalistas e comentadores falarem com assertividade e certeza no dinheiro que, segundo eles, era de Sócrates, de luvas recebidas, etc. Não têm dúvidas nem precisam que os tribunais se pronunciem. Quem os ouça, diria que Sócrates já foi condenado em última instância de todos os crimes que é acusado. E, no entanto, o julgamento (nos tribunais) nem sequer começou.
Uma vergonha, isto, num Estado democrático e que deveria ser um Estado de direito.
Poderia ainda referir as imagens dos interrogatórios a Sócrates: os inquiridores falam em suposições e, do que vi, nunca em factos concretos que incriminem Sócrates. E, do que vejo, Sócrates indignado e furibundo, mostrando a sua revolta por não haver factos ou pelas acusações não fazerem qualquer sentido. E já por ali anda tudo misturado: a gestão do BES, as relações entre Salgado, o Granadeiro e Bava. Como se tudo fosse uma gigantesca cabala para beneficiar Sócrates. Como numa telenovela em que afinal uma que se supunha mera figurante ser, afinal, mãe da rapariga e outra ser, afinal sua irmã e o pai ser quem menos se suspeitava. Todos relacionados com todos, num argumento fantasioso e improvável. Só que estamos perante pessoas que ali expõem a sua vida real e não personagens de novela.
E, vendo o que vejo, só penso nisto: qualquer pessoa que caia nas malhas de uma Justiça destas está feita para o resto da vida. Mesmo que venha a provar-se ser inocente, terá gasto anos da sua vida a ser trucidado e humilhado na praça pública -- e isso nunca nada apagará. E toda a sua família terá sofrido os horrores da infâmia e da vergonha. Uma pessoa que caia num tal rede de suposições passa a ser uma vítima, uma vítima indefesa.
Mas a reportagem está urdida, na verdade, como uma novela: depois de vermos a revolta de Sócrates perante acusações que parecem infundadas, a SIC mostra gravações de conversas telefónicas e mostram-nos enredos laterais e ficam dúvidas e suspeitas no ar.
Agora, enquanto escrevo, na SIC Notícias falam jornalistas que parecem estar na qualidade de jurados mas, na verdade, assumindo a posição de acusadores. Apenas uma das presentes se distancia. Salvo ela, todos falam na fragilidade da acusação, na ausência de provas e tal e tal... mas, na maior leviandade, continuam em frente, passando por cima de pruridos e dando por provadas as acusações. A expressão facial, o tom de voz é o de acusadores saciados. Nota-se que se sentem heróis: derrotaram Sócrates, o 'animal feroz'. Imagino-os, a estes pequenos jornalistas', saindo do estúdio felizes consigo próprios e pensando: fez-se justiça, Sócrates está crucificado
Um dos pilares essenciais de uma vida saudável em liberdade e democracia é o do direito a uma justiça isenta. Contudo, com o maior dos desplantes, a SIC, qual Correio da Manha, passa por cima de todos os direitos de qualquer cidadão e assume o papel de acusador, fazendo um julgamento público sem direito a argumentação por parte da defesa.
E eu o que tenho a dizer a isto é que o que se está a passar é uma vergonha e apenas lamento que os orgãos judiciais do meu país assistam passivamente a isto sem o impedirem, sem agirem como deveriam fazê-lo. Uma vergonha a todos os títulos - para a comunicação social, para a justiça.
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De resto. Puxo pelos meus fracos galões e permito-me dizer: dizem os outros e dizem os assessments a que tenho sido sujeita que não sou burra. Acresce a minha formação académica e a minha experiência profissional (pelo menos, parte dela). A lógica, a análise científica de hipóteses, a construção de modelos e a validação da sua aderência à realidade faz parte do que estudei e pratiquei.
E é assente nestes alicerces que continuo a dizer: não tenho provas de que Sócrates seja culpado de corrupção. Também não sei se é inocente e espero que sejam os tribunais a decidi-lo. Mas, até prova em contrário, qualquer pessoa é inocente e como tal deve ser tratada. Suposições não são provas. Nunca na vida, em circunstância alguma, dou por certos raciocínios baseados em hipóteses não comprovadas.
Posso desenhar raciocínios com base em intuições mas, atenção, a intuição não é divinação à toa mas, sim, um atalho nas deduções, chegando, a partir de sinais, à conclusão.
Ora, neste caso, o que digo desde o primeiro dia é que, das suposições que ouço, nada concluo. Tanto podem fazer sentido como não. Inclino-me mais para que sejam delirantes e sem uma única prova que as suporte, apenas suposições cruzadas ou derivações umas das outras. Mas não sei. Para isso existem os tribunais.
Contudo, aqui ou ali há aspectos desconcertantes que me levam a admitir que, no meio dos mil tiros que a acusação atirou para o ar, alguns possam acertar em alguma coisa, quiçá até num prato que esteja de passagem. Mas isso se verá -- no julgamento (nos tribunais e não na praça pública, repito)
Posso ainda dizer que me deixa desconfortável a ideia de que Sócrates usava tanto dinheiro emprestado e que o pedia com tanto à vontade. Isso não encaixa na linha de conduta que gosto de ver em pessoas que respeito. No meio de mil suposições e acusações, isso é verdadeiramente o que a mim mais me incomoda. Mas, se for só isso, pode ser eticamente questionável mas crime não é.
Mais: tenho que dizer que conheço outros casos assim. Ainda há pouco, ao telefone com uma pessoa, referi casos que ambos conhecemos em que pelo menos duas pessoas e respectivas famílias viajam como nababos, passam férias como sultões e seguramente recebem empréstimos avultados de um amigo rico. E não sei, mas juraria, que não há cá contabilidades nenhumas entre eles. Portanto, sei que há casos assim e onde não há corrupção ou coisas estranhas nenhumas pelo meio: há apenas uma pessoa muito rica que gosta de fazer agrados aos amigos e amigos que não se importam de receber agrados, vivendo uma vida tão faustosa como o amigo que lhes paga todas essas mordomias.
E do que sei isto passa-se por uma razão simples: o muito rico, se não fizer isto, acabaria por não poder conviver com os seus amigos já que eles não têm como partilhar despesas.
Portanto, dizer o quê sobre este aspecto em particular? Não digo nada.
De resto, e quanto a tudo o mais, o que digo é que a Justiça em Portugal tem mostrado ser uma perigosa anedota. E que é bom que deixe de o ser.
A inquisição já devia ser coisa do passado.
Apedrejar pessoas até à morte é hábito que também não deveríamos querer importar.
Consta que, sempre, a turbamulta gostou de ver sacrificar até à morte aqueles que caem nas malhas das suposições; mas, enfim, gostaria de acreditar que, por cá, a turba já adquiriu alguns bons hábitos civilizacionais como, por exemplo, o de não praticar justiça popular. Mas não sei. A psicologia de massas explica muita irracionalidade e muitos crimes têm sido, ao longo dos tempos, cometidos em nome dos melhores propósitos.
Portanto, que o Estado de Direito funcione é o que se espera.
E Marcelo, sempre tão lesto a comentar tudo e mais alguma coisa e dar lições a propósito de qualquer pequeno evento, deveria agora chegar-se à frente e exercer o seu poder de influência junto das instâncias judiciais e, estando-se em domínios que são os seus, ter um papel pedagógico junto da opinião pública. Não pode nem deve ficar calado perante esta vergonha pública.